Que se passa neste país, com um governo em gestão, à beira mar plantado?…
Milhares de polícias em protesto nas ruas, já com ameaças de boicote às eleições Legislativas em março? Centenas de agricultores nas estradas, que admitem fazer desaparecer alguns produtos nas prateleiras dos supermercados? Milhares de alunos sem aulas, porque há professores envolvidos em protestos ou em baixas duvidosas? Justiça adiada por expedientes dilatórios das defesas, demoras absurdas e inoperância dos tribunais? Megaoperações policiais, a pretexto de buscas urgentes, para depois os arguidos detidos ficarem dias à espera de interrogatório, num claro abuso dos seus direitos cívicos e constitucionais? Manifestações de extrema direita e contra-manifestações de extrema esquerda, reeditando a antiga parafernália dos “ismos”?

E que dizer de mais de 200 mil auto-baixas médicas de curta duração (não superiores a três dias de faltas ao trabalho), a maioria encostada, estrategicamente – como seria de prever -, a fins de semana e a feriados, graças a uma iniciativa impensada e folclórica do governo, em vigor desde maio do ano passado, o que permitiu a um responsável do ministério da Saúde rejubilar “com a poupança gerada por esta medida”?

E que dizer, também, de médicos que continuam a prestar-se a passar declarações de baixa, solicitadas com fins obviamente falsos?

O que está a passar-se é demasiado grave – e com contornos inéditos – para ninguém se preocupar, como se estivéssemos ainda sob a lenda dos “brandos costumes” e de que tudo isto não passa de escaramuças sem importância.

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O que está em causa não se esgota na meia dúzia de feridos em desacatos à porta do estádio municipal de Famalicão. Tem um significado intrínseco, reflectindo  mal estar, a resvalar para o espírito de rebelião, que grassa nas forças de segurança e que contamina outros sectores, perante políticos assustados.

Deverá ser tudo levado à conta de “tubos de ensaio”, como se fala agora a propósito dos embaraços partidários, relacionados com o próximo governo açoriano pós desfecho das eleições regionais? Ou arriscamos a que seja um experimentalismo perigoso?

Quando seria desejável que o cinquentenário do 25 de Abril fosse comemorado de uma forma madura e institucional, eis que os media se enchem com mensagens inquietas sobre o “extremismo de direita” pintado de fascismos, e as ruas (e as estradas…) de polícias, professores e de agricultores zangados.

Alarmados com as mais recentes sondagens, valham estas o que valerem – onde o Chega é o partido que mais progride nas intenções de voto, enquanto a Aliança Democrática e o PS estabilizam num empate técnico -, os políticos e os comentadores avençados, desataram a chamar “os bombeiros” para acudir aos fogos que eles próprios atearam, ao promover André Ventura a “incendiário “

Recuemos um pouco na crónica recente: incapaz de gerir a maioria absoluta que, inesperadamente, lhe caiu ao colo – e consciente, no fundo, de que tinha dado corpo a um dos governos mais incompetentes do pós 25 de Abril -, o PS de António Costa achou que a melhor maneira de segurar o poder seria transformar o Chega num “cavalo de Tróia” da direita, para fragmentar o eleitorado tradicionalmente afecto ao PSD, e, com essa estratégia, limitar o seu crescimento como alternativa.

O acinte gratuito de Augusto Santos Silva na condução dos trabalhos parlamentares contra a bancada de Ventura, fiel ao seu lema antigo de “malhar na direita “, entregou “de bandeja” ao líder do Chega a oportunidade de vitimizar-se, e de contra-atacar, na mesma moeda, agravando o tom desabrido.

Entretanto, o PS e o seu governo empenharam-se em desprezar a disponibilidade do PSD de Rui Rio, pronto a assinar acordos em nome da estabilidade institucional. E, com essa arrogância, liquidaram, à nascença, o namoro do   principal partido da oposição.

A maioria absoluta, conseguida à custa de um eleitorado confuso, desviou o PS do País real, para se concentrar naquilo que mais lhe importava, ou seja, a captura do Estado como garantia da perpetuação do poder.

Descartada a “geringonça” sem o menor pudor, o PS voltou a governar sozinho e a colocar “infiltrados” nas principais entidades, supostamente independentes, de forma a poupar-se a maçadas e a vozes incómodas.

Reinou como quis e, para evitar os sustos e os “maus olhados” da era de Sócrates, o PS assumiu para si as ”contas certas”, retirando esse argumento à direita moderada, enquanto Mário Centeno promovia as famigeradas “cativações”, um eufemismo para encobrir  a falta de  investimento e a ruina da  administração pública.

Como recompensa, Centeno viria ser entronizado na cadeira de governador do Banco de Portugal, que há muito ambicionava, embora quase a trocasse pela de primeiro ministro, se Marcelo não lhe estragasse os planos ao convocar eleições antecipadas, algo que tanto ele, como António Costa e Fernando Medina lastimaram.

Tudo isto feito, recorde-se, com a aquiescência (ou o silêncio) da extrema esquerda, do Bloco e do PCP, que fizeram o favor de recolher as suas “tropas” a quartéis, arrefecendo a contestação urbana.

Este pacto não escrito, se é certo que travou ou, no mínimo, amenizou a contestação social, também fomentou um sentimento de impunidade, que passou a ser exibido pela mediocridade de muitos, precipitando eleições, ao arrepio da vontade do “estado maior” socialista.

O PS maioritário tanto desejou o poder absoluto que acabou a subestimar, sistematicamente, as oposições, tanto à esquerda como à direita. E, alegremente, resolveu atiçar o Chega, para este ganhar “tempo de antena” e captar o voto dos descontentes, em prejuízo do PSD.

Versátil e sem grandes pruridos, o PS percebeu, afinal, que podia desempenhar o duplo papel de ser governo e oposição, defendendo uma coisa e o seu contrário.

Pior: achou que poderia adoptar, também, algumas bandeiras da extrema esquerda, desde o arco íris LGBT aos activismos climáticos e racializados, em obediência à nova cartilha woke, associando-se ou tomando a dianteira em matérias que costumam preencher os devaneios bloquistas.

Uma delas foi a controversa lei da autodeterminação de género nas escolas – mais conhecida pela “lei das casas de banho” -, vetada, e bem, pelo Presidente da República, devolvendo o decreto ao parlamento, bem como outro sobre a escolha de nome próprio “neutro”.

Em resumo, não faltam as incertezas no arranque de um ano invulgar, fértil em consultas eleitorais.

Foram as regionais nos Açores, com os resultados que se sabem, um prelúdio para as Legislativas antecipadas em março? Quiçá. Serviram, no entanto, para testar o relançamento de um governo de maioria relativa, cuja estabilidade dependerá, em primeiro lugar, da vontade do PS, que para o derrubar precisará, contudo, de aliar-se ao Chega… e não chega.

Luís Montenegro arriscou estar presente, apesar de as sondagens mais recentes atribuírem a vitória ao PS, algo que não deixou passar em branco, assinalando novamente o desaire de institutos especializados.

A taxa de abstenção, ao fixar-se nos 49.67% – menor do que a de 2020, que foi de 54,59%, e muito abaixo do recorde verificado em 2016, na ordem dos 59,15% -, ficou no “congelador”.

Mas não deveria, porque se trata de uma questão relevante, nas autonomias e no continente, como ficou demonstrado num estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, publicado em finais do ano passado.

Segundo o referido estudo, houve nas ultimas Legislativas “cerca de um milhão de eleitores a mais relativamente às estimativas da população residente com cidadania portuguesa, com 18 ou mais anos”, o que influenciou a abstenção nessas eleições em 7 por cento, o que não é despiciendo.

Pelos vistos, nada que tire o sono aos directórios  partidários, que se aplicam com afinco na defesa das suas cores, sem cuidarem de corrigir sequer os cadernos eleitorais.

A campanha bem-sucedida da renascida AD nos Açores trouxe, naturalmente, um novo elã aos social-democratas, depois da época dourada em que reinou João Bosco Mota Amaral, durante quase duas décadas, confundindo-se  com o enraizamento da autonomia regional.

A expectativa de Luís Montenegro será a de repetir a proeza dos açorianos no todo nacional em março, travando a continuidade do PS no governo.

Se o conseguir, não o esperam tempos fáceis, no estado em que António Costa deixa o País, com sectores fundamentais em polvorosa, desde a Segurança, à Saúde, à Educação ou à Justiça.

Ao contrário da era de Sócrates, as “contas certas” fizeram caminho, embora à custa de “cativações” e de uma fiscalidade pesada. Mas a degradação que cresceu no interior do governo, as decisões erráticas, multiplicaram o descrédito e a deram asas à contestação social.

Ironicamente, nunca nenhum governo anterior gozou da folga financeira de que Costa foi beneficiário no quadro dos apoios europeus. E, não obstante, deitou tudo a perder, desperdiçando a mais valia de uma maioria absoluta, que poderia ter contribuído para alavancar o desenvolvimento do País. O que não aconteceu.

À beira das celebrações de meio século de democracia, não isenta de sobressaltos, o País ainda se assemelha a um laboratório com os seus tubos de ensaios em ebulição. O problema é que todas as experiências têm um limite…