O discurso de encerramento de Pedro Nuno Santos no encerramento do Congresso do PS é impressionante e facilmente subscrito, dos valores a algumas medidas, por todos nós. Mas claro que tinha de ser protagonizado por alguém que tivesse sido mais crítico do que aconteceu nos últimos oito anos.

Estará o PS, ou parte dele, a mostrar que já estava, afinal, farto do “não fazer nada” dos governos de António Costa, para aplaudir tão entusiasmado a crítica à governação que foi o discurso de Pedro Nuno Santos? Porque endeusar António Costa e aplaudir o que disse Pedro Nuno Santos é muitíssimo contraditório. Ou será que, agora, sem medo de “levar”, porque é isso que acontece a quem se mete com o PS, mesmo aos seus militantes, já se pode discordar? É pelo menos isso que se retira das declarações de alguns dos apoiantes de Pedro Nuno Santos que, de repente, discordam do que estava a ser feito. E exatamente o mesmo se pode dizer de Pedro Nuno Santos. Porque nunca teceu uma crítica audível à falta de decisões de António Costa antes de estar consagrado líder?

Porque é ao primeiro-ministro em exercício que se devem dirigir boa parte das críticas do discurso de Pedro Nuno Santos, a começar pela última parte. Não foi a “direita”, que aliás não governou, que “transformou a principal função de um político – tomar decisões – numa coisa negativa, errada e indesejada”, como nos diz o novo líder do PS. Foi António Costa. Pedro Nuno Santos foi, aliás, uma das vítimas dessa incapacidade de decisão, quando se viu obrigado a voltar atrás na sua iniciativa sobre o novo aeroporto em Junho de 2022, pouco depois da maioria absoluta, levava já o Governo cerca de sete anos. Foram oito anos em que, numa primeira fase, as decisões tinham como objetivo único manter o poder, satisfazendo a agenda do Bloco de Esquerda e do PCP dentro dos limites das exigências europeias.

Mesmo as críticas de Pedro Nuno Santos à decisão do PSD de estudar o parecer técnico sobre o aeroporto são inconsistentes com aquilo que pensa: as decisões são políticas, baseadas em análises técnicas. E no caso do TGV, sobre o qual é muito difícil perceber a pressa e até os contornos, como alertou Luís Marques Mendes, só se pode entender o que disse o novo líder do PS como uma auto-crítica. O que é que se fez nestes últimos oito anos?

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Também o diagnóstico sobre a situação do país, embora recuado em casos como a habitação, a saúde e a educação, assim como algumas medidas, são uma auto-crítica e uma crítica a António Costa. Por exemplo, porque não se fez um programa de desburocratização e simplificação de processos que agora se promete? Porque não se aumentou efetivamente a oferta de casas e se acordou tarde de mais para o problema? Porque se deixou a Saúde e a Educação chegar ao ponto a que chegaram?  Os problemas que hoje enfrentamos têm as suas raízes nas escolhas que o PS fez, nomeadamente na estratégia que foi seguida para reduzir o défice orçamental sujeito ao apoio do BE e do PCP, com Pedro Nuno Santos a desempenhar um papel bastante ativo no Parlamento.

Os problemas que hoje enfrentamos têm origem na falta de investimento público para reposição de equipamentos, na ausência de reformas tão simples como a desburocratização e simplificação administrativa de que fala Pedro Nuno Santos, na incapacidade de antecipar problemas e de os resolver atempadamente, como no caso da habitação, saúde e educação, e na falta de decisões como se vê no aeroporto e no TGV. Mesmo as queixas do PS em relação à justiça são da sua responsabilidade, incapaz que foi de melhorar o enquadramento legal para não assistirmos a este prolongar de processos, como é o de Sócrates ou de Salgado, de que agora acaba como vítima enquanto alvo de investigações.

É aliás extraordinário como António Costa conseguiu, pelo menos em parte, transformar-se numa vítima do Presidente da República, que o levou ao colo nos últimos oito anos, e do Ministério Público, cuja procuradora foi escolha sua. António Costa, assim como Carlos César e Augusto Santos Silva, sabe bem que era impossível ter Mário Centeno primeiro-ministro e Pedro Nuno Santos líder do PS. Como sabe perfeitamente que mesmo sem o famoso parágrafo não tinha condições para continuar no Governo.

Sim, o discurso de Pedro Nuno Santos foi um bom discurso, embora caia no erro, que radicaliza a sociedade, de dizer que só o PS se preocupa com a comunidade. Sabe bem que não é assim, todos os partidos se preocupam com a comunidade, do PCP ao Chega, estão é convencidos que as suas soluções são as melhores para se atingirem os objetivos de crescimento e promoção da igualdade. Pode ser um sonho, mas era muito bom que o debate passasse a respeitar esse princípio – nenhum partido quer o mal das pessoas – em vez de estarmos a alimentar o obscurantismo de uma sociedade já de si política e economicamente iletrada.

Do programa de Pedro Nuno Santos vale a pena destacar os objetivos de desburocratização e o de acabar com o chuveiro de apoios às empresas, concentrando-os em prioridades estratégicas devidamente estudadas. Sim, os liberais consideram que quem sabe melhor quais são essas prioridades são as empresas. Só que isso não é verdade em sectores que ainda estão numa fase tecnológica prematura ou em que os investimentos são demasiado elevados e arriscados para serem suportados sem apoios – só para dar dois exemplos. Assim como não faz sentido apoiar sectores engarrafados de investimento, como é o turismo.

Não é o argumento mais forte, mas também deve ser considerado que é isso que estão a fazer a maior parte dos países, reforçando-se essa tendência, e até necessidade, após a pandemia e a invasão da Ucrânia pela Rússia, no quadro de um reajustamento da globalização. Por muitas criticas que mereça a forma como foi feito – e que ainda hoje nos custa o aumento da tarifa da electricidade – actualmente temos maior segurança energética e fomos menos afectados pela crise energética graças à aposta que José Sócrates fez nas renováveis.

Mas acabar com o chuveiro de apoios, que dá uma gota a cada um, exige coragem política e, especialmente, estar disposto a expor-se às criticas de clientelas que se habituaram a ter sempre algum apoio do Estado.

Já as ideias para os salários e para o arrendamento são mais discutíveis. O aumento do salário mínimo criou o problema de aproximação ao salário médio com um empobrecimento da classe media, especialmente a baixa. As empresas limitaram-se a subir o salário mínimo à custa dos outros salários, macroeconomicamente falando, obviamente. Não se pode apenas subir o salário mínimo, é preciso começar a estudar medidas que resolvam o problema de empobrecimento da classe média. E a solução não é o IRS, ou até um apoio como aconteceu em 22 com Fernando Medina como ministro das Finanças, porque há limites para essas saídas. Como todos bem sabem, o segredo para a subida efetiva de salários, sem ser dar a uns tirando aos outros como está a acontecer, é aumentar a produtividade. E para isso é preciso ter empresas que criem mais valor acrescentado e não um país de turismo.

Já no caso da actualização das rendas é difícil perceber a assimetria da regra – mais de 2% de inflação a renda passa a ser actualizada em função dos aumentos salariais.  E porque não quando a inflação é 2%? Uma regra melhor seria a inflação prevista no Orçamento do Estado ou até pelo Banco de Portugal, até para evitar alimentar a inflação.

Uma última nota para assinalar o erro de o PS não convidar o Chega para o encerramento do Congresso. Os socialistas sabem bem que a forma como estão a tratar o Chega é o melhor caminho para aumentar o seu eleitorado. E só podem estar a fazer o que fazem, e a dizer o que dizem, conscientes do efeito eleitoral que isso tem no seu principal adversário, o PSD. Em suma, o PS é e será o principal responsável pela subida eleitoral do Chega, seguindo-se o PSD pela sua incapacidade de sair da armadilha em que os socialistas o meteram.

A terminar, notas sobre dois acontecimentos desta última semana que ilustram um modelo de governação sem respeito pelo Estado de Direito, por incapacidade de fazer as reformas necessárias, e decisões que se tomam mais para servir o interesse de perpetuação no poder do que para servir os cidadãos.

O caso das “leis malandras”

Na operação Influencer, que investiga os procedimentos seguidos no projeto PIN da Start Campus, o Ministério Público considera que foi feita, em Conselho de Ministros, uma alteração “à medida” no novo Regime Jurídico de Urbanização e Edificação, depois de ter sido aprovado no Parlamento. (Ver aqui o artigo de Luís Rosa). Vale a pena recordar que não é caso único embora, se se provar, este pode ser um caso mais complicado, pelo menos politicamente, porque o Governo altera legislação aprovada pelo Parlamento.

Logo no primeiro Governo de António Costa foi feita uma “lei à medida” para forçar a saída de Isabel dos Santos de accionista do BPI. Na altura o próprio Presidente Marcelo Rebelo de Sousa quis demarcar-se dessa decisão, dizendo que esse diploma já vinha de Aníbal Cavaco Silva, quando não correspondia à realidade como se pode ler aqui.

Claro que ninguém criticou. Estava em causa um problema muito complicado para o BPI, numa altura em que os problemas do sistema financeiro ainda não estavam totalmente resolvidos. E Isabel dos Santos já na altura não merecia a idoneidade do supervisor europeu, mas não deixamos de ter uma “lei à medida”.

Outra alteração à medida foi a que retirou competências aos municípios no caso da localização do novo aeroporto, depois de dois deles, Moita e Seixal, se terem oposto à localização do aeroporto na BA6, no Montijo. E, neste caso, com o apoio do PSD.

Claro que não deve ser assim, mas o caso que está a ser investigado está longe de ser o único. Na operação Influencer é necessário averiguar se houve corrupção. Já em termos de respeito pela separação de poderes parece mais complicado que os outros casos se o Governo alterou regras já aprovadas pela Assembleia da República.

Leis à medida seriam muito menos necessárias se tivéssemos melhores e menos leis. Foi nisso que este Governo Falhou, sendo depois apanhado nos remendos que tenta fazer para contornar a burocracia que não foi capaz de combater e eliminar.

Os CTT e a (falta) de preocupação com os cidadãos

No caso da compra de acções dos CTT por parte do Governo, quando João Leão era ministro das Finanças, e aparentemente para garantir a aprovação do Orçamento do Estado por parte do PCP, claro que estão em causa vários valores como as obrigações de transparência. Mas o que causa maior perplexidade é a incoerência entre o que dizem ser o objetivo da compra – melhorar o serviço dos CTT – e o que depois acontece com o novo contrato de concessão em que se retiram poderes à Anacom na definição dos critérios de qualidade de serviço, cedendo ao que queria a empresa, como se pode ler neste texto de Alexandra Machado.

Ou seja, não é melhorar o serviço dos CTT para melhor servir as pessoas que está na base da preocupação que levou à compra das acções e às criticas à privatização, é manter o poder e colocar a propriedade do capital acima dos objetivos de servir bem a população. Ao mesmo tempo que depois se é menos exigente com o serviço que os CTT prestam. É isso que o povo vai percebendo aqui e ali, com as consequências eleitorais que vamos vendo.

O povo pode estar, pelo menos parte dele, enfeitiçado com o PS e cliente dos apoios. Mas esta forma de governar retira credibilidade aos políticos que tanto dela necessitam e leva a que discursos, mesmo de qualidade como o de Pedro Nuno Santos, sejam tratados com um encolher de ombros. A classe política que nos tem gerido está a ser responsável pelo que se está a passar nas democracias e continua sem o reconhecer, o primeiro passo para se resolver um problema. E com práticas que contradizem os discursos.