Uma das poucas vantagens da preocupante situação política que estamos a viver no Ocidente reside na intensa conversação de elevada qualidade que está a gerar. Os melhores jornais estão focados e os melhores analistas também. Não há tempo a perder para tentar interpretar o que se está a passar — e, se possível, para tentar sugerir algumas pistas sobre o que deve ser feito.

John O’Sullivan — antigo conselheiro de Margaret Thatcher e antigo director da norte-americana National Review, actual director da revista australiana Quadrant — deu um contributo estimulante na edição de 31 de Dezembro da revista britânica The Spectator. O título (que adoptei para este meu artigo) e subtítulo resumem o argumento: “Populismo vs. Pós-democracia: no meio, a democracia maioritária luta por espaço.”

O autor vem apresentando este argumento há vários anos (designadamente nas edições anuais do Estoril Political Forum do IEP-UCP, onde tem sido orador permanente — embora, como ele gosta de recordar, minoritário). Basicamente, O’Sullivan vem dizendo que, nas democracias ocidentais, tem havido “uma gradual transferência de poder de corpos eleitos e que prestam contas, tais como os Parlamentos, para agências semi-independentes e burocráticas que fazem as suas próprias leis (a que chamam ‘regulação’), para os tribunais e, em anos mais recentes, para entidades europeias e outras trans-nacionais.”

Curiosamente, prossegue O’Sullivan, o sentido político das decisões destas entidades não eleitas tende a ser uniforme: interferem nos hábitos espontâneos dos modos de vida tradicionais e tentam impor por decreto uma ortodoxia politicamente correcta; re-desenham as relações entre os sexos, hostilizam as tradições religiosas judaico-cristãs, impõem regulamentações extravagantes às empresas e às relações contratuais voluntárias.

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É a isto que John O’Sullivan chama “pós-democracia”: o governo através de entidades não eleitas e, por isso, não susceptíveis de escolha pelos eleitores. Segundo ele, é esta “pós-democracia politicamente correcta” que está a gerar a vaga populista em curso na Europa e nos EUA. No caso europeu, a ausência de controlo parlamentar sobre as fronteiras nacionais, bem como a “miragem supra-nacional do euro” teriam sido, segundo O’Sullivan, as principais responsáveis pelo desencadear da vaga populista.

Esta vaga populista, por seu turno, ameaça as saudáveis convenções das democracias parlamentares e introduz no discurso público uma bizarra e potencialmente perigosa condenação das chamadas “elites”, quando não da própria democracia. Por isso, prossegue O’Sullivan, assistimos a uma perigosa bipolarização: à esquerda, a insistência na pós-democracia supra-nacional; à direita, o populismo anti-institucional. Daí o subtítulo do artigo em The Spectator: “no meio, a democracia maioritária luta por espaço”.

Como resolver este problema? A resposta de O’Sullivan parece simples: deixar funcionar a democracia parlamentar. Isso significa trazer as questões fracturantes para o debate público e acabar com o unanimismo politicamente correcto dos partidos centrais. Se isso acontecer — como, no seu entender, aconteceu no Reino Unido — os temas fracturantes serão tranquilamente absorvidos pelos Parlamentos e os partidos populistas serão neutralizados. (É um facto que, no Reino Unido, mesmo após a vitória do “Brexit”, o Ukip continua a ser um partido marginal, apenas com um deputado no Parlamento).

O argumento de O’Sullivan terá certamente lacunas. Ele não identifica claramente os limites a partir dos quais uma democracia parlamentar pode transformar-se naquilo que outros autores têm designado por “democracia iliberal”. Em vários países europeus — a Polónia e a Hungria são os mais citados — aquilo que O’Sullivan designa por “democracia maioritária” (o simples governo da maioria) parece estar a ameaçar o sistema constitucional de “freios e contrapesos” que impede a ditadura da maioria.

Por outro lado, no entanto, o argumento de O’Sullivan é totalmente compatível com a melhor doutrina sobre a democracia liberal. Como recordaram Joseph Schumpeter e Karl Popper, o que distingue a democracia liberal não é que o povo governa — uma miragem inviável em sociedades complexas e, para aqueles autores, seguramente indesejável; o que distingue a democracia liberal é que os eleitores podem demitir os governantes através de eleições livres e competitivas.

Se este mecanismo de controlo dos eleitores sobre os eleitos for enfraquecido — designadamente através da remoção das decisões políticas para fora dos Parlamentos nacionais — será muito difícil domesticar a vaga populista.

Tentei esboçar um argumento semelhante aqui quando sugeri que “é muito possível que o espectro que verdadeiramente ronda a Europa seja o da radicalização mútua entre radicais inimigos das ‘elites’ e radicais inimigos do ‘populismo’”. Mas há certamente argumentos diferentes que merecem ser ponderados. A eles conto voltar nas próximas semanas.