José Seabra Duque declara que “é maior prova de lealdade uma crítica frontal e aberta”, mas escreveu um artigo inteiro contra mim e não teve a coragem nem a decência de dizer o meu nome. Talvez pela gravidade das acusações que se permitiu dirigir-me. Só há duas deputadas municipais do CDS em Lisboa e ele não se referia à minha colega de bancada. Além disso, fui eu quem respondeu ao jornal Público que a pessoa viva que mais admiro é Francisco Rodrigues dos Santos.

Agora que esta parte ficou estabelecida, vale a pena examinar o texto e aclarar os erros que ele deixa à mostra. Interessa descrever o que separa as duas correntes internas do CDS para que não se pense, como Seabra pensou e como vi escrito na paisagem, que o partido se desfaz numa querela baixa de “ódios” e “intrigas” pessoais.

Começando por Lisboa, já que é o assunto de incompreensão mais recente, vejamos porque é que não faz sentido João Gonçalves Pereira ser candidato, apesar do desgosto provocado ao dr. Rui Paulo Figueiredo, distinto deputado do PS, que, durante uma intervenção minha na Assembleia, lamentou carinhosamente: “Que saudades do JP!…” (“JP” é como lhe chamam os amigos mais próximos). O CDS não se apoquenta com a falta que os seus representantes fazem aos figurões do PS. A esta direcção interessa representar a direita. As pessoas são ou não adequadas, repito, de acordo com cada projecto político. Mas se esta verdade simples não fosse suficiente, o próprio “JP” começou e acabou por dar a razão mais forte: ele é contra a coligação com o PSD, disse pública e repetidamente que o era e nem se compreende como é que ele não foi o primeiro a informar que não aceitaria concorrer na lista de Carlos Moedas. Bem podem os figurões juntar-se em cortejo, levantar-lhe um altar e acender-lhe velinhas. A direcção de Francisco Rodrigues dos Santos decidiu – e bem – tentar resgatar Lisboa das unhas do PS. É bom que se vão habituando, porque também queremos tirar à esquerda o resto do país. Estamos mandatados para isso, desde o congresso de Aveiro em Janeiro de 2020.

E a união do partido, que José Seabra Duque, como um realejo, reclama do presidente e ao presidente aponta o dedinho trémulo pelo fracasso. Sucede que a união do partido não depende da vontade ou sequer da competência de Francisco Rodrigues dos Santos. Desde logo, porque a divisão não tem origem em questões pessoais, mas sim numa divergência política. Se o problema decorresse de uma série de insatisfações pessoais, seria fácil de resolver, como sabe qualquer dirigente de segunda ou terceira linha. Dependeria de uma conversa aqui, um entendimento acolá, como sempre aconteceu nos partidos. Mas a natureza destas lógicas está para além do que José Seabra Duque consegue compreender, e por isso é que ele atribui a divisão do partido à insinuada impreparação do presidente, ao oportunismo dos seus apoiantes e às minhas velhacarias. Tudo o que este pobre homem consegue ver é questões e motivações pessoais. Quando tenta subir ao plano político, fica como dizem os brasileiros: está no mato sem cachorro.

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O que temos no CDS é uma fractura profundamente política e tem como ponto de partida uma decisão clássica, uma das decisões mais determinantes numa liderança e mais definidoras de um talento político: saber identificar o nosso adversário. No entender da anterior direcção, o adversário era o PSD. Por isso encontrei a alegria nos corredores do Caldas quando António Costa armou a geringonça. Para os dirigentes que governaram o partido nos dois mandatos de Assunção Cristas, a festa era impossível de conter posto que “acabou o voto útil”. Este conjunto impecável de sábios reflectiu ponderosamente o estado do país e concluiu que os votos do PSD lhes iriam cair no colo. Bastava, para isso, comportarem-se e falarem como se comporta e fala o ar do tempo, esponjas nas arestas, vértices encapsulados em esferas de borracha, como se faz aos móveis para proteger as crianças. Incidir em declarações piedosas, exibir virtude, muito sentimento, uma ou outra frase açucarada subtraída aos poetas mais medíocres. Nalgum tropeção mais escandaloso, o PS haveria de cair. E o CDS ali ao lado, todo lavadinho, a alternativa evidente. Para o PSD ficaria o odioso dos anos da tróica, dos “cortes atrás de cortes”, do “neoliberalismo que mata” (naqueles anos nenhuma alma do CDS dizia de si própria que era “liberal”), e do dr. Passos Coelho. Se houvesse no mundo uma gota de decência, nunca mais o PSD passaria da soleira da porta.

É fascinante a quantidade de factos políticos que é preciso não saber para se construir uma política destas. A primeira coisa a deitar no cesto dos papéis seria a dignidade histórica do CDS, que fez parte desse governo, possivelmente o governo mais difícil e honrado do Portugal democrático; um governo que passou quatro anos a garantir que os portugueses continuavam a receber algum salário, debaixo de todos os abanões e todas as calúnias. Pedro Passos Coelho e Paulo Portas deixaram no país uma impressão de seriedade e capacidade, um “safe pair of hands” depois da bancarrota de Sócrates e as respectivas consequências. Deixaram na Assembleia da República quase uma segunda maioria absoluta. Só para o CDS, deixaram 18 deputados. Como é que os dirigentes que vieram a seguir não compreenderam o que o país lhes disse?

Mas há outra perplexidade. Os responsáveis da direcção anterior escolheram a política de não escolher nada, de não definir coisa alguma, de defender tudo. Foi copiosa a quantidade de posições que o CDS defendeu, em parte para não ofender ninguém. Em que mundo é que isto pode funcionar? O eleitor senta-se no carro, liga o rádio, e na terça-feira ouve um dirigente do CDS defender aquilo que ele gosta; chega a casa, liga a televisão e ouve o mesmo dirigente, com igual empenho, defender aquilo que ele detesta. E assim se passaram dois mandatos. Porque é que este eleitor haveria de votar no CDS? Nenhum dos nossos sábios se lembrou de pensar nisto?

Em 2019, na sequência do desastre eleitoral que destruiu o partido, comecei a perguntar à direcção de Assunção Cristas qual era a sua explicação. Pedi muitas vezes, em abundantes assembleias e reuniões, e até hoje não consegui uma versão oficial. É fácil perceber a razão: eles não sabem. Não é uma questão de má fé ou de maus modos. Muito simplesmente, a direcção anterior não pode dar uma explicação porque não sabe. Até hoje, esse conjunto de ex-dirigentes ainda não compreendeu. Mais: eles continuam convencidos que a sua política estava certa, que o PSD é o adversário, e que Rodrigues dos Santos está errado. As únicas explicações que ouvi foram pessoais e superficiais (voltamos ao mato…): para alguns, “a culpa foi do Melo” e apontam-lhe a campanha das eleições europeias, que teria “estragado tudo”; para outros, “a culpa foi da Assunção” porque “não soube fazer bem aquilo”. Há ainda uma terceira teoria, porventura a mais indigente, que atribui o fracasso ao “desgaste do ajustamento”. Esta teoria é muito maluca: então “o ajustamento” não deixou lá 18 deputados?

Não, meus senhores, a culpa foi da decisão que esteve na raiz da vossa política. Escolhendo o PSD como adversário, o CDS não foi compreendido pelos eleitores como uma alternativa. Zangados com o PS, vendo o PSD desfeito e o CDS à deriva, estes eleitores não foram votar. Nenhum destes partidos mereceu a confiança deles. Por isso é que o CDS teve, em número de votos, o pior resultado de sempre. Ainda para mais, consegue esta proeza numas eleições em que não temos a desculpa do voto útil, o tal de que nos tínhamos “libertado”, e em que o PSD também teve um resultado péssimo. Toda a direita desceu. E o próprio PS ganhou as eleições com menos votos do que alguma vez teve. Querem dar atenção a isto?

Francisco Rodrigues dos Santos está a fazer uma política inteligente, que pode reconstruir o partido da destruição que nos deixaram, e que pode, neste momento, ajudar o país. Percebeu que o PS é o causador dos problemas mais sérios e mais graves de Portugal, e os mais difíceis de ultrapassar. Desde logo, a pobreza; Portugal não pára de divergir da Europa e de se aproximar dos países com rendimentos mais baixos. Depois, o próprio sistema democrático, que não sobrevive saudável à ocupação que o PS tem feito às instituições do regime que só podem servi-lo se forem independentes. E depois a história, que agora é vista pelos olhos da extrema- esquerda, de quem o PS depende e que não pode enfrentar; e a cultura, que nunca desceu à mediocridade dos dias de hoje; e o ensino, totalmente decidido pelos sindicatos e pelo radicalismo. E a família, que agora tem de ser formada segundo os critérios da esquerda fanática.

Os eleitores de hoje são os eleitores de uma sociedade que mudou. A maior parte deles estudou e esfolou-se para uma licenciatura e trabalha abaixo das expectativas, exerce funções em empregos de que não gosta, trabalha compreensivelmente mal e ganha mal. Sabe que a esquerda e o PS comprimem as empresas com impostos, sabe que a economia que podia pagar bons salários não vem instalar-se em Portugal. Sabe disto tudo e já não é possível, como era antigamente, prometer qualquer coisa aos eleitores, muitos deles miseráveis e analfabetos. Os eleitores de agora exigem uma política reflectida e uma linguagem clara. Exigem cabeça e explicações. Não esperam um génio para primeiro-ministro, uma figura sobrenatural; esperam uma equipa de governantes capazes liderada por um responsável sensato e com as ideias no sítio.

Em última análise, estes eleitores querem ver-se livres do PS. Ou somos capazes de ver que eles existem, ou continuamos sem compreender o país. Ou somos capazes de os representar, ou eles não se levantam para votar. Com ou sem consciência disso, são os eleitores da direita e têm feito ponto de honra na abstenção.

Muito resumidamente: no entender da direcção anterior, o melhor para a direita era livrar-se do PSD. No entender desta direcção, o melhor para a direita é livrar-se do PS.

Estou com Francisco Rodrigues dos Santos desde o princípio, porque o vi convencido a combater o PS e orgulhoso de se mostrar como um representante da direita, sem subtilezas nem adjectivos. A política que ele quer fazer está certa, e merece ser mostrada aos portugueses. Mais importante ainda, os portugueses merecem conhecer e avaliar a política de Francisco Rodrigues dos Santos.