Já tive ocasião de aqui comentar, em linhas gerais, o Motu próprio Traditionis Custodes, do Papa Francisco, que restringe o uso da chamada forma extraordinária do rito latino de celebração da Eucaristia.

Nessa crónica, preferi não apresentar a opinião do Papa emérito sobre a reforma litúrgica, para não dar azo à ideia de que há dois Papas, quando há um só, Francisco. Bento XVI deixou de ser Papa no momento em que renunciou ao pontificado romano. Embora seja referido, por cortesia, com o seu nome papal, ou como Papa emérito, é mais lógico referi-lo apenas pelo seu nome, Joseph Ratzinger, uma vez que já não é Papa e Bento XVI era o seu nome enquanto tal.

Sendo Joseph Ratzinger um dos teólogos mais brilhantes do nosso tempo, é sempre oportuno ouvir a sua palavra, que não se contrapõe à do Papa Francisco, mas que certamente a completa e aprofunda. Foi neste sentido que, a partir de um texto do anterior Papa, se elaborou esta “entrevista”, em que todas as palavras atribuídas a Joseph Ratzinger correspondem, ipsis verbis, ao que o ex-Papa escreveu (A minha vida, Livros do Brasil, 2010, págs. 106-108). Embora este texto de Ratzinger venha muito a propósito das actuais circunstâncias, foi publicado há mais de dez anos e, por isso, como é óbvio, não é relativo ao recente Motu Proprio do Papa Francisco.

Como recebeu a publicação do Missal dito de São Paulo VI?

O (…) grande acontecimento que ocorreu no começo dos meus anos de Ratisbona foi a publicação do ‘Missal’, de Paulo VI, com a proibição quase total do ‘Missal’ anterior, após uma fase de transição de cerca de seis meses. O facto de, após um período de experiências, que amiúde desfiguraram por completo a liturgia, se passar a ter um texto litúrgico vinculativo, era de saudar como algo seguramente positivo”.

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Mas, segundo tenho entendido, a publicação desse Missal também foi motivo de alguma perplexidade …

“Fiquei estupefacto com a proibição do ‘Missal’ antigo, dado que nunca na história da liturgia se verificara uma situação semelhante. Quis-se passar a ideia de que era uma coisa normal. O ‘Missal’ anterior tinha sido publicado por Pio V em 1570, na sequência do Concílio de Trento; era portanto normal que, passados quatrocentos anos e um novo Concílio, um novo papa publicasse um novo ‘Missal’.”

Mas, não era essa a tradição histórica?! Quando se publica um novo Missal, não se revoga o anterior, como se faz quando se promulga uma nova lei?

“A verdade histórica é outra. Pio V limitara-se a reelaborar o ‘Missal’ romano que se utilizava na época, coisa que aliás sempre acontecera ao longo dos séculos. Por seu lado, muitos dos seus sucessores reelaboraram ulteriormente este ‘Missal’, sem nunca, porém, contraporem um ‘Missal’ ao outro. Tratou-se sempre de um processo contínuo de crescimento e de purificação, em que, no entanto, a continuidade nunca era posta em causa. Um ‘Missal’ de Pio V, que tenha sido criado por ele, simplesmente nunca existiu.”

Mas, não é verdade que o Papa Pio V fez um novo Missal?

“O que existe é a reelaboração que ele mandou fazer, como fase de um longo processo de crescimento histórico. A novidade, após o Concílio de Trento, foi de outra natureza: a invasão súbita da reforma protestante fizera-se sentir sobretudo na modalidade das reformas litúrgicas. Não havia simplesmente uma Igreja católica e uma Igreja protestante, postas uma ao lado da outra, a divisão da Igreja ocorreu quase imperceptivelmente e teve a sua manifestação mais visível e historicamente mais incisiva nas mudanças ao nível da liturgia.

“Estas mudanças resultaram de tal maneira diversificadas ao nível local, que o limite entre o que era e não era católico se tornou, amiúde, bem difícil de definir. Esta situação de confusão, criada pela ausência de uma normativa litúrgica unitária e pelo pluralismo litúrgico herdado da Idade Média, fez com que Pio V decidisse que o ‘Missale Romanum’, o texto da liturgia da cidade de Roma, por ser seguramente católico, devia ser introduzido em todo o lado onde não houvesse uma liturgia com, pelo menos, duzentos anos de existência. Onde este critério se verificava, podia manter-se a liturgia anterior, dado que o seu carácter católico era considerado seguro. Não se pode, por isso, falar de uma proibição relativa aos ‘Missais’ anteriores e até ao momento regularmente aprovados.”

Que aconteceu com o Missal da reforma litúrgica conciliar?

Agora, pelo contrário, a promulgação do impedimento do ‘Missal’ que se tinha desenvolvido ao longo dos séculos, desde o tempo dos sacramentais da Igreja antiga, implicou uma ruptura na história da liturgia, cujas consequências não podiam deixar de ser trágicas. Tal como já tinha acontecido muitas vezes, era razoável e plenamente em linha com as disposições do Concílio que se fizesse uma revisão do ‘Missal’, sobretudo, tendo em consideração a introdução das línguas nacionais. Mas nesse momento aconteceu algo mais: destruiu-se o edifício antigo e, embora utilizando o material e o projecto deste, construiu-se um novo.”

O novo Missal não representa uma melhoria em relação ao anterior?

Não há dúvida de que, em algumas partes, este novo ‘Missal’ trouxe verdadeiros melhoramentos e um real enriquecimento. Contudo, o facto de ter sido apresentado como um edifício novo – contraposto ao que fora construído ao longo da história – que se proibisse este último e que, de certa maneira, se concebesse a liturgia já não como um processo vital, mas como um produto de erudição especializada e de competência jurídica, trouxe-nos danos extremamente graves.”

Pode-se então dizer que, não obstante os “verdadeiros melhoramentos” e “real enriquecimento” do novo Missal, este representa, de certo modo, uma ruptura com a tradição?

Com efeito, deste modo desenvolveu-se a ideia de que a liturgia se ‘faz’, de que não é uma realidade que exista antes de nós, – algo de ‘dado’ -, mas que depende das nossas decisões. Consequentemente, esta capacidade de decisão não é só reconhecida aos especialistas ou a uma autoridade central, mas também em definitivo a qualquer comunidade que queira ter uma liturgia própria.”

Que consequências pode ter, para a Igreja Católica, a ideia de que a liturgia é algo que se ‘faz’, e não que se transmite de geração em geração?

“O problema é que, quando a liturgia é algo que cada qual pode fazer à sua maneira, ela deixa de nos poder dar aquela que é a sua verdadeira qualidade: o encontro com o mistério, que não é produto das nossas acções, mas a nossa origem e a fonte da nossa vida. Para a vida da Igreja, é dramaticamente urgente um renovamento da consciência litúrgica, uma reconciliação litúrgica, que volte a reconhecer a unidade da história da liturgia e compreenda o Vaticano II não como ruptura, mas como momento evolutivo.”

Não lhe parece que a Igreja contemporânea enfrenta crises muito mais graves do que a litúrgica?

Estou convencido de que a crise eclesial em que actualmente nos encontramos depende, em grande parte, da decadência da liturgia, que, por vezes, é mesmo concebida ‘etsi Deus non daretur’: ‘como se já não interessasse se Deus está ou não presente nela’, se Ele nos fala e ouve ou não. Mas se na liturgia já não aparece a comunhão da fé, a unidade universal da Igreja e da sua história, o mistério de Cristo vivo, de que modo é que a Igreja manifesta a sua substância espiritual? Nesse caso, a comunidade celebra-se apenas a si mesma, coisa que não tem qualquer valor.”