É curioso como com um olhar e escuta mais atentos aos dizeres coloquiais, às manifestações mais espontâneas no dia-a-dia de espanto, de justificação, de oposição, de interrogação, de afirmação, de exclusão incluem a adjectivação ser ou não normal. Parece ser, sem sombra de dúvida, dos aspectos mais relevantes e até críticos da vida das pessoas: ser ou sentir-se normal. Ser normal é estar na norma, é ser regular, é estar na média, é ser adaptado, é ser ordinário, é não ser diferente, é não ter anomalias, é não se afastar do habitual. Exclamamos cumplicemente “não é(s) normal” quando nos fazem rir. Vociferamos “não é(s) normal” quando nos magoam. Afirmamos manipuladoramente “não é(s) normal” quando pretendemos influenciar. Alertamos “não é(s) normal” quando estamos preocupados. Lamentamos “não é(s) normal” quando algo nos custa a compreender e a aceitar. Há algo de incrivelmente apaziguador da nossa angústia existencial na normalidade, ao sermos (ou sentirmo-nos) semelhantes de uma certa forma aos demais da nossa espécie. Por que vivemos a diferença de forma “ameaçadora”, quando é por ela que nos destacamos do todo formado pela humanidade e quando esta é reveladora do sentido de uma maneira de ser inteiramente singular? A vida é sempre anómala, no sentido que pressupõe diversidade, mas tal diversidade não é negativa, patológica e evitável. Traz antes possibilidades de se ser.

Partilho que na minha prática enquanto Psicóloga é recorrente escutar das pessoas que me procuram o seu íntimo e autêntico desejo de se sentirem normais. Por que vivenciam acontecimentos de vida desestruturantes, por que experienciam resultados em desempenhos vários como medíocres, por que experimentam sensações e estados afectivos que rejeitam, por que se condicionam e se comparam incessantemente aos outros… Recordo-me agora em particular da Sofia [nome fictício], que no início da sua adultícia participou numa formação que dinamizei sobre desenvolvimento de competências pessoais e sociais, e que no momento inicial de apresentação que propus, se expõe ao grupo e a mim dizendo que a sua motivação para ali estar não era para melhorar esta ou aquela competência ou atingir com isso determinada meta (ao contrário dos demais). A Sofia, sacudindo os cabelos para trás dos ombros e desentrelaçando os seus finos dedos das mãos declara “Eu quero é sentir-me normal. Sinto-me frequentemente diferente dos outros, de uma forma que me é difícil, que me desconforta e quero mudar isso. Às vezes parece que tudo é errado em mim, por isso quero deixar de ser como sou”. Estou certa de que aquela introdução interpelou muitos dos outros formandos, que após uns instantes de um silêncio que senti como de reflexão, intervieram com conteúdos mais pessoais e profundos, possibilitando momentos de real partilha e crescimento.

Não posso estar mais de acordo com Canguilhem quando refere que “O homem não se sente senão com saúde quando se sente normal, isto é adaptado ao meio e às suas exigências – mas normativo, capaz de sobreviver a novas normas de vida.” (Nouvelles Réflexions concernant le normal et le pathologique, 1966). E a propósito de 4 de Setembro ser o Dia Nacional do Psicólogo, celebro com alegria a oportunidade desafiante de ter esta profissão, em que numa enorme amplitude de contextos, formatos e contributos tenho a possibilidade de estar disponível para me encontrar com o(s) outro(s), e ao colocar-me a mim mesma entre parêntesis, ajudar esse(s) outro(s) a ser(em) tudo o que é(são).

Psicóloga especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, Psicologia da Educação, Psicoterapia e Psicologia Vocacional e do Desenvolvimento da Carreira

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