O descalabro político e económico britânico das últimas semanas pesa sobretudo sobre o Reino Unido, mas tem também impacto regional e até global. Contribui para o sentimento generalizado de incerteza e de crise do Ocidente. Apesar dos erros catastróficos de Liz Truss nas últimas semanas, a Grã-Bretanha continua a ser a quinta maior economia global e a terceira maior potência militar do Mundo, a mais importante da Europa Ocidental. A agora demissionária líder conservadora britânica, eleita no início de Setembro pelos militantes, tem grande responsabilidade pessoal na situação presente, mas o problema vai muito para além dela e não se resolverá apenas com a sua saída.

A trapalhada de Truss

É assim que muitos conservadores têm descrito o que se tem passado no seu governo e no seu partido durante as últimas semanas – a shambles – uma trapalhada. O que ajuda a explicar o facto sem precedentes de uma líder recém-eleita ser forçada a sair ao fim de pouco mais de mês em funções, isso e, claro, o facto político fundamental de Truss não se ter sujeito a eleições gerais. Há um dito nos corredores de Westminster – todas as vidas políticas acabam em fracasso. Duvido que isso sirva de grande consolo para Truss. Num sistema tão competitivo como o britânico, mesmo um líder bem-sucedido muitas vezes acaba, de facto, por ser forçado a abandonar o poder. Foi o caso de Margaret Thatcher, forçada, em 1990, a deixar a chefia do governo pelo seu próprio partido. É muito diferente, no entanto, essa desgraça acontecer ao fim de onze anos, controversos, mas marcantes, ou ser-se forçada a sair ao fim de 45 dias, como é o caso.

Truss fica na história política do Reino Unido, mas pelas piores razões, como a chefe do governo que menos tempo esteve em funções. Até aqui o detentor desse recorde era George Canning, primeiro-ministro por 118 dias, em 1827. E apesar de tudo Canning já tinha tido uma carreira distinta, como diplomata, inclusive como embaixador em Portugal, e, por duas vezes, como Ministro dos Negócios Estrangeiros tendo, por exemplo, um papel relevante na negociação do reconhecimento da independência do Brasil. Canning também tinha a melhor justificação possível para ser forçado a abandonar o cargo ao fim de tão pouco tempo – morreu em funções.

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Já Liz Truss ficará conhecida como a líder conservadora que ao fim de pouco mais de mês no cargo tinha uma taxa de aprovação de 7% e uma taxa de inflação de 10%. Na sua carreira política, iniciada em 2010, nunca se distinguiu particularmente, exceto pela ambição. Teve aliás uma trajetória algo sinuosa, iniciada ainda na universidade de Oxford, como líder da juventude de outro partido, os Liberais-Democratas, numa altura em que se dizia republicana. Também começou por se opor ao Brexit, para depois, como Ministra dos Negócios Estrangeiros de Boris Johnson, se tornar na pouco diplomática porta-voz do setor mais hostil à União Europeia. A única coisa que parecia dar alguma coerência ao percurso político de Liz Truss era ser muito favorável ao setor privado e à baixa de impostos. Fez dessa agenda a grande bandeira da sua campanha para a liderança dos conservadores. Foi avisada pelo seu rival, o ex-ministro das finanças Rishi Sunak, de que esse tipo de choque fiscal num momento de colossais despesas públicas para atenuar o efeito de uma enorme volatilidade seria irresponsável e poria em risco a estabilidade económica.

Truss ignorou os avisos, conquistou o apoio dos militantes conservadores, e, honra lhe seja feita, cumpriu a promessa, criando um enorme buraco orçamental, seguido da queda a pique da libra e do disparar das taxas de juro. Se há uma coisa que a história política britânico nos mostra é que os britânicos dificilmente perdoam a quem preside a uma desvalorização brutal da sua moeda. Truss ficou fatalmente ferida: tentou manter-se em funções, mas sem credibilidade, sem programa, sem poder, acabou por ser forçada a sair. Mas Truss é só a face mais recente da instabilidade criada pelo Brexit de 2016 em diante.

O fracasso do Brexit

Liz Truss fracassou em toda a linha e muito do desaire é pessoal. O seu falhanço, no entanto, é também revelador de um problema mais amplo e complicado: a impossibilidade de o Brexit cumprir as promessas irrealistas com que o sobrecarregaram os seus promotores.

Ao nível da economia, o Brexit era suposto garantir de forma rápida a libertação das “regras de Bruxelas” e um crescimento económico muito forte, resultando ainda num bónus significativo sob a forma de reforço do investimento nos serviços públicos. Porém, o crescimento económica britânico pós-Brexit tem sido anémico. A pandemia e a guerra não ajudou, mas isso não explica tudo, a Grã-Bretanha era 90% da economia da Alemanha antes Brexit agora é 70%. Esta trapalhada de Truss resulta também de uma tentativa desesperada, ignorando um contexto adverso, de acelerar a economia. Mais, as ditas regras de Bruxelas afinal incluíam regras de bom-senso na gestão da economia como não se poder reduzir brutalmente receitas e aumentar brutalmente despesas sem se pagar um preço elevado por isso.

O fracasso do Brexit não se fica por aqui. Na política interna, o Brexit era suposto acabar com as divisões no seio do partido conservador. Claramente isso não aconteceu. Apesar da ampla maioria conservadora obtida nas eleições de 2019 – com base no carisma de Boris Johnson, nas promessas do Brexit, e no estado desastroso dos trabalhistas – os tories não conseguem dar estabilidade ao país porque continuam em guerra civil. Querem provas? Em 2022, um ano de enormes desafios globais, a Grã-Bretanha vai a caminho do terceiro primeiro-ministro e já teve quatro ministros das finanças!

Por fim, no campo da política externa, o Brexit era suposto voltar a fazer da Grã-Bretanha uma grande potência global. Era suposto também ajudar a reforçar ainda mais as suas relações com os EUA. É evidente que o prestígio e a credibilidade britânica no mundo ficam abalados com estes crises sucessivas. Basta recordar que o anterior ministro das finanças, Kwasi Kwarteng, teve de ser chamado de volta de urgência quando estava numa visita à capital norte-americana para ser demitido! E, por falar em EUA, o presidente Biden fez questão de vir publicamente distanciar-se das opções políticas de Liz Truss. Sobretudo, o prometido acordo de comércio livre entre britânicos e norte-americanos não parece próximo. O Brexit de sonho lindo está a transformar-se num pesadelo bem real. Será que isto basta para deixar de ser a marca identitária de muitos conservadores britânicos? Espero que sim, mas duvido.

A mim parece-me evidente que uma Grã-Bretanha forte e credível faz falta, mais ainda numa Europa que enfrenta a agressão russa. Uma das possíveis vítimas desta trapalhada é, aliás, o anunciado reforço significativo do orçamento da defesa britânico. Será fundamental que Londres se deixe de delírios nacionalistas e retome as suas melhores tradições de bom-senso e pragmatismo, na política económica, na política externa, e nas relações com os seus vizinhos europeus, deixando de ter na União Europeia o eterno bode-expiatório da retórica política interna. Teremos de ver se será assim, porque quem tem grandes certezas sobre a política britânica nos tempos que correm não está a perceber bem o que se está a passar.