Não vi o debate sobre o estado da nação: era previsível, como confirmaram os excertos mostrados nos noticiários da noite. O governo reivindicou méritos que só por cegueira facciosa se pode não lhe reconhecer. A oposição dedicou-se essencialmente ao irresponsável exercício de bota-abaixo e demagogia a que há muito nos habituou.

A maioria exibiu os seus trunfos, que podem justificar algum orgulho e proporcionar o doce sabor do dever cumprido. Portugal conserva-se no Euro e na UE, o SNS continua a funcionar, o RSI e diversas prestações sociais subsistem, e se alguém está mais pobre é a impropriamente chamada “classe média” e não os pobres que já eram pobres antes da crise e cuja ancestral miséria não foi agravada pela aterragem da Troika em Portugal.

E, não obstante, é difícil iludir um certo sentimento de frustração ante um país que, contra os reiterados prognósticos catastrofistas da oposição mas também contra o fundado cepticismo de observadores imparciais, conseguiu vencer grandes dificuldades mas falhou na criação dos alicerces que o protejam contra borrascas semelhantes no futuro. Com efeito, continuamos frágeis e pobres, vulneráveis e demasiado dependentes da evolução económica europeia. Não se enxerga a fonte de onde possa derramar o crescimento económico que unicamente nos pode pôr a salvo da Dívida, do Déficit e do Desemprego, os fatais três “D’s” que encerram o rosário das nossas misérias.

Portugal – tanto o geral da população como quem o representa institucionalmente, o que envolve toda a classe política e até toda a elite tecnocrática – parece não ter percebido que faz parte de um mundo completamente transformado pelo engalfinhamento colectivo na competição global. Pensar que nos podemos preparar para essa competição sem alterar a nossa estrutura económica, sem redefinir as regras que no essencial continuam a reger o nosso mundo laboral, é mais ou menos o mesmo que pensar que um Fiat 500 pode ganhar uma corrida a um Ferrari.

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Para o bem ou para o mal – e eu, como conservadora que sou, tendo a pensar que para o mal – toda a sociedade, todo o modo de viver, todas as relações familiares, todos os códigos de comportamento se alteraram radicalmente. Na Universidade, os alunos vão vestidos para as aulas como se fossem comer caracóis para uma esplanada da Costa da Caparica; nos livros de Jonathan Franzen ou Philip Roth a família, vencida pelo niilismo moral da contemporaneidade, assiste, desarmada e impotente, à disfunção dos seus membros mais jovens. Apenas no mundo do trabalho se pretende, entre nós, perpetuar o pós-guerra do século XX, tal como, em meados do século XIX, os chapeleiros portuenses fizeram greves para impedir a introdução de horários de trabalho.

É por tudo isto que a falta de uma reforma do Estado em larga medida inutiliza os dolorosíssimos esforços que fizemos para criar as condições para que Portugal pudesse entrar no mundo do século XXI. O acerto das nossas contas públicas, que deixou tanta gente desempregada, podia ter sido uma história desgraçada com um final feliz – uma destruição criadora. As miríades de micro-empresas, que constituíam um lastro decisivo da economia nacional, empregavam muitas famílias, mas não acrescentavam valor. Se tivesse havido uma reestruturação económica a sério, a maioria delas desapareceria de vez, deixando milhares de pessoas irremediavelmente sem futuro, porque totalmente impreparadas para as exigências profissionais de um tecido empresarial moderno. Um tal sacrifício geracional, que aliás não seria inédito na história humana, mas que o Estado teria a indeclinável obrigação de minorar, abriria porém o caminho a que as futuras gerações desfrutassem de uma vida mais gratificante, embora desprovida da segurança laboral sem a qual a maioria dos trabalhadores portugueses ainda hoje não concebe o mundo. A vida será – já é em muitos lados – cada vez mais mudança e movimento. Lutar contra a globalização é como pretender anular as ondas do oceano. Cumpre ao governo proteger os excluídos do Progresso e do Futuro.

Não recomeçando, como, a avaliar pelas medidas já anunciadas, parece que já recomeçou, a velha política económica, que tradicionalmente tem como eixo central a intervenção do Estado como provedor do capitalismo doméstico, impõe-se
inexoravelmente a reforma da desmesurada super-estrutura que as exigências do Estado Social agigantaram ainda mais. Perdeu- se, temo, a oportunidade de implementar um modelo de desenvolvimento diferente do que nos trouxe até Maio de 2011 (data da assinatura do memorandum com a Troika). Refiro-me a algo que seja o contrário desse modelo, que assentava na capacidade dos governos de injectarem investimento público que absorvesse mão de obra e produzisse, por arrastamento, dinamização económica. Não arrastou nem dinamizou coisa nenhuma. É tempo de mudar.

Uma economia de mercado protagonizada por agentes económicos privados, criativos e empreendedores, exige um Estado relativamente pequeno e o menos interventivo possível. Um Estado mais barato, em suma, que não esbulhe, através da punção fiscal de que se alimenta, os recursos financeiros dos indivíduos, das famílias e das empresas. O Fisco sufoca Portugal e os portugueses. Infelizmente, nada de substancial foi feito para resolver este nó górdio da vida nacional. As próximas eleições legislativas estão à porta e os socialistas, ontologicamente gastadores, se encarregarão de dar cabo do melhoramento das nossas contas públicas e de restaurar o papel do Estado como grande investidor e empregador.

O Futuro está já hoje adiado. Ele começava por uma reforma constitucional que viabilizasse uma reforma do Estado. É certo que a peculiaridade político-partidária portuguesa se erguia contra estes dois desígnios. Mas, então, ficamos sem perceber por que motivo o governo os adoptou no seu programa. Foi só para entreter?