Apanho o comboio em Algés e um jovem nos seus trintas e muitos leva na mão um livro de uma santinha e na outra um rosário. Veste mal e de cores escuras. Crucifixo de madeira feioso por cima de um pullover de malha castanho igualmente desinspirador. A figura, quando observada (porque o mais fácil é nem dar conta dela), parece um sketch do Herman com meios de produção mais económicos. Acho que alguém assim passa hoje mais despercebido porque temos menos olhos para a religião—o nosso vocabulário visual já nem uma caricatura católica topa.

Como sou protestante, o meu instinto poderia tranquilizar-me que nada naquele sacro-cidadão me dizia respeito. Não temos santinhos, não usamos rosários ou rezas fixas, por sermos de classe média somos mais susceptíveis a comprar roupas da moda, e por aí fora. Mas isso é irrelevante. Aquele cromo-beato católico no comboio tem no seu ar semi-sinistro algo que me pertence também e no qual acredito totalmente. Talvez não pensasse assim há vinte anos, mas hoje sei que é da minha equipa aquela figura meio susto, meio súplica.

Alguém que reza no meio da multidão assusta. Acreditar ficou um assunto privado mas isto é colocado em causa se um membro da claque de seminaristas exibir a sua devoção (esse sketch do Gato Fedorento da claque de seminaristas é memorável). Assusta mesmo. A religião ser privada também é o resultado de pensarmos que podemos tratar da nossa vida sem depender de Deus. Quem quiser depender dele está no seu direito desde que o faça de um modo razoavelmente higiénico, sem nos espetar rezas e rosários pelos olhos. Ora, arrepia num transporte público haver transe privado. Nessa medida, senti-me parte daquela disfunção. Quero ser também aquela figura meio susto.

Por outro lado, rezar no meio da multidão serve de paradoxal coming out para o miserável. Quem ora assume que depende de um poder que não é o seu—torna-se um pedinte que não pode ser sossegado com moedas. É uma pobreza que incomoda mais porque não tem como ser aliviada por quem assiste à cena. Aquele suplicante no comboio, invocando os poderes celestes, é uma nódoa literal e escura na toalha branca da nossa autonomia existencial. Já não estamos preparados para um universo de súbditos, subordinados e submissos. Claro está, senti-me novamente parte daquela disfunção. Quero ser também aquela figura meio súplica.

Cabe-me, portanto, encarnar esse projecto de re-escurecer o mundo. Passo a vida a escrever isto nestes textos e nas deambulações com que incomodo quem tem o azar de conversar comigo: o projecto cristão por excelência é trazer trevas para um mundo que irremediavelmente se iluminou. Qualquer figura que consigo transporte alguma medida de susto ou de súplica enverga o mesmo equipamento que eu. Mesmo que eu não reze a santinhos e mesmo que não segure em rosários, aquele cromo-beato católico de ar semi-sinistro no comboio representou-me. Naquele momento, a carruagem cheia de outros reflectiu quem sou.

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