E aconteceu mesmo: por quatro pontos percentuais, o Reino Unido pôs-se fora da União Europeia. Toda a gente vai agora recordar a tradição de altivez inglesa, ou os erros dos líderes europeus nos casos do euro e dos “refugiados”. Mas é fundamental, antes que todos comecem a especular sobre o que vai acontecer a seguir, rever o processo que obrigou os eleitores britânicos à mais dramática de todas as votações europeias dos últimos quarenta anos. É que este foi um daqueles casos em que um político, para evitar uma inundação na cozinha, deitou fogo à casa e acabou por incendiar o bairro inteiro.

Perante a enormidade das consequências, poderá parecer incrível, mas a causa de tudo isto foi um pequeno truque de David Cameron. O alvo do referendo era o UKIP de Nigel Farage. O UKIP já tem 24 deputados no parlamento europeu, e só o sistema eleitoral britânico limita a sua representação em Westminster. Cameron temia que a pressão do UKIP levasse muitos deputados conservadores, para defenderem os seus círculos eleitorais, a reavivar a querela europeia que destruiu a governação conservadora na década de 1990. Pensou provavelmente que um referendo o ajudaria a obter concessões de Bruxelas. Armado com essas concessões, poderia confiar na inércia do eleitorado para vencer por uma larga maioria e matar a questão europeia.

David Cameron, porém, não previu tudo, como não podia prever, a começar pela crise dos refugiados e o pânico sobre o terrorismo no ano passado. Acabou, nestas circunstâncias, por ter um referendo, não sobre a soberania parlamentar ou sobre o acesso ao mercado único, mas sobre a imigração. O Reino Unido é um dos países da Europa onde a afluxo de estrangeiros mais explodiu nos últimos vinte anos. A população de origem imigrante, que estagnou nas décadas de 1970 e de 1980, duplicou a partir da década de 1990. O seu peso na população total subiu de 7% em 1993 para 13,1% em 2014. Desta vez, o argumento do Brexit de que os governos, ao tolerarem a imigração, “mudaram o país sem consultar ninguém” contrariou a acusação de “racismo” com que o debate é tradicionalmente suspenso. Mas para além da imigração, foi toda a chamada “globalização” que esteve no pelorinho. O referendo desenhou dois países no Reino Unido. De um lado, Londres e a Escócia, isto é, os centros da finança internacional e da indústria de petróleo; do outro lado, o mundo rural e as antigas zonas industriais da Inglaterra, que sempre sentiram ter perdido com a globalização e que votaram maciçamente para sair da UE, não apenas contra a recomendação de Cameron, mas também contra a preferência do líder trabalhista Jeremy Corbyn.

David Cameron dispôs-se a jogar uma espécie de roleta russa política, para descobrir subitamente que o carregador do revolver tinha muito mais do que uma bala. Grandes figurões do Partido Conservador, como Boris Johnson ou Michael Gove, estiveram do lado da saída. Durante a campanha, Cameron teve de contar com o apoio da direcção do Partido Trabalhista, apesar de ser a mais radical dos últimos trinta anos. Com duas vitórias eleitorais, Cameron foi até ontem o mais bem sucedido líder conservador deste Margaret Thatcher. Ontem, provou que um líder político pode ser atropelado pelo automóvel que ele próprio está a conduzir.

Que será agora de um governo dividido, dependente de um partido dividido, num país dividido? E que será de uma União Europeia onde o líder de um dos seus grandes países criou o precedente de sujeitar a integração, pensada como um processo irreversível, a confirmações arriscadas? Será possível continuar a integração europeia, sem saber quem é que, no próximo ano, vai apostar tudo na roleta dos referendos? O mundo mudou ontem, e a partir de agora a história vai ser outra. Mas não esqueçamos como tudo começou.

Rui Ramos é historiador

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