A entrevista do primeiro ministro ao diário espanhol ABC, no domingo passado, só interessou a imprensa portuguesa pelo que António Costa disse sobre o TGV. Mas essa não era a grande revelação da entrevista. A novidade estava na sugestão de que o governo português em Espanha é muito diferente daquilo que é em Portugal. Em Portugal, o governo de António Costa é um governo de esquerda, apoiado por comunistas e neo-comunistas, para combater o neo-liberalismo e a austeridade. Em Espanha, é outra coisa: um governo alinhado com a direita espanhola, não apenas na defesa da unidade de Espanha e da candidatura de Luis de Guindos, combatida por toda a esquerda local, mas também, segundo estampava o ABC na capa, na preferência muito neo-liberal pelo “investimento privado” e pela “redução de impostos” como alavancas da economia. O ABC, previsivelmente, aproveitava para esfregar “o acerto de António Costa” no nariz do PSOE.

Em espanhol, António Costa soa como a imitação quase perfeita de um governante sensato: “fomos sempre uma economia muito aberta, como é normal no caso de um país pequeno. Aprendemos que precisamos de políticas claras e de boas relações com os investidores”. Porque, diz ele, não há lugar para keynesianismos: “Não podemos recorrer ao investimento público por causa da dívida que temos”.

Isto é bem a clássica fórmula de “um país, dois sistemas”: um sistema para os estrangeiros, outro sistema para os nacionais. Costa deseja espanhóis na banca, chineses na energia, franceses nos aeroportos. Para os estrangeiros, o governo faz de Portugal o novo faroeste do capitalismo, o maior paraíso fiscal da Europa, onde os reformados do norte podem vir gastar as suas pensões sem terem de pensar em impostos. Para os nacionais, o governo tem outro Portugal: um Portugal onde o Estado se apropria da maior parte do que os cidadãos ganham e poupam, e onde ninguém sabe hoje qual será a lei amanhã (veja-se o alojamento local). Um país muito liberal para os estrangeiros, e muito socialista para os nacionais.

Mas esta dualidade não corresponde só as necessidades de um Estado endividado numa economia descapitalizada, a precisar de atrair estrangeiros e de espoliar nacionais. Corresponde também às conveniências de um grupo de políticos que dependem de toda a espécie de equívocos e de mal entendidos para se manterem no poder. Costa e os seus colegas de governo viram fracassar as ideias de Guterres, os métodos de Sócrates, e até, nas eleições de 2015, a sua própria estratégia pós-troika. Já não acreditam em nada nem confiam em ninguém. Dizem o que cada um quer ouvir. Têm tido sorte. Não sabem quanto tempo vai durar. Até lá, aproveitam.

António Costa disse ao ABC ter aprendido que “precisamos de ter políticas claras”. Mas é isso que não temos. As leis laborais são um exemplo. Num dia, perante os clamores do PCP e do BE, o ministro Vieira da Silva admite que haverá alterações; no dia seguinte, segundo a imprensa, “trava as exigências da esquerda”; e ao terceiro dia, anuncia que afinal tudo já mudou, é só consultarem as leis com um pouco mais de atenção. Talvez seja possível argumentar que o ministro esteve sempre a dizer a mesma coisa: mas que coisa, exactamente?

Dir-me-ão: enfim, são pragmáticos e pelo menos calaram o PCP e o BE. Mas isto não é pragmatismo, é ambiguidade e desorientação, e o PCP e o BE só estarão quietos com concessões que o governo pode não satisfazer, mas também não é livre de recusar peremptoriamente, aumentando a confusão. Com a actual solução política, tudo está no ar. Nunca saberemos ao certo o que é este governo e para onde leva o país. Que segurança podem sentir os portugueses que em Portugal trabalham, poupam e investem?

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