Lá vou ter de escrever sobre ‘os intelectuais de direita a sair do armário’ segundo Paulo Moura e o Público de 15 de junho. Deixem-me descansar-vos, antes de mais: não pretendo fazer uma teoria geral da direita. Desde logo porque teoria geral soa a keynesiano e, já se sabe, a direita (a que usa neurónios e não é de esquerda, pelo menos) não aprecia Keynes. Não, quero mesmo só dar uns palpites sobre esta direita e os blogues onde tudo começou (porque é de onde eu venho) que supostamente está a sair do armário e da esquerda que sobre ela reflete.

Esclareça-se também que eu não sou uma intelectual, e digo isto não só por não conceber que alguém diga de si próprio ‘sou um intelectual’ sem ruborescer pela presunção. A minha formação foi em Economia, o meu trabalho é em empresas, pelo que sou daqueles seres inferiores que tratam do ganho do vil metal, desprezado por qualquer intelectual que se respeite; na verdade só a desfaçatez do meu tipo de pessoa me leva a supor que posso comentar coisas de intelectuais. Ou contrariar pessoas de esquerda.

Como a desfaçatez abunda, aqui estamos. O artigo do Público é delicioso. Em primeiro lugar porque pretende falar da nova direita e acaba só falando da direita conservadora, nada nova, mesmo quando ilustra com conservadores apelativos, que antes seriam heterodoxos, como Henrique Raposo. Desconfio que a esquerda ainda não consiga falar daquilo que é de facto novo, a direita liberal, sem antes tomar uma quantidade perigosa de ansiolíticos. E diz coisas fabulosas. Parece que o que une a direita (ou quase) é o ‘tradicionalismo, o valor da nação e a religiosidade’ e ‘pessimismo antropológico’.

Vamos lá ver. Há gente de direita que é religiosa, há agnósticos e há ateus; não somos esquisitos. O ‘valor da nação’ talvez excite especialmente conservadores da velha guarda (mesmo se novos de idade) e o pessimismo – bem, gargalhemos.

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E chego, enfim, esfregando as mãos, ao tradicionalismo. O facto de uma realidade resistir ao teste do tempo não a torna só por isso desejável ou, sequer, eticamente defensável. A escravatura durou milénios. As castas na Índia também. A segregação dos judeus e os pogroms na Europa. Os estados papais, que chegaram a um terço de Itália. As mulheres chinesas tiveram séculos a fio os pés enfaixados. O racismo. A violência sexual sobre mulheres e crianças. A culinária britânica. E um largo etc.. Parem lá de assediar a direita com a tradição.

Mas não desesperemos. Apesar de a direita liberal ser ignorada, afinal já (atentemos ao já) não necessitamos de estar confinados às leprosarias políticas. Uma pessoa boa (i.e., de esquerda) já pode ser amiga de alguém de direita. Já não é um ultraje aos antepassados recusar o socialismo. Já não somos intelectualmente inferiores (quanta bondade!). Nem – já – uns facínoras que se deleitam ao ver crianças a mendigar descalças na neve (nesta altura já não me levam a mal ir buscar imagens à vendedora de fósforos de Andersen, pois não? Estes exemplos estão só um bocadinho exagerados, por questões estilísticas, face ao que está no Público.)

Posto isto, pergunta-se: em que mundo a gente de esquerda tem vivido para imaginar que a direita foi o que já não é? Quão sectário é preciso ser para assumir que alguém que recusa a socialização dos meios de produção (que foi o que os partidos socialistas defenderam até à desagregação da URSS) é insensível à pobreza alheia? Nem levanta suspeitas que a Igreja, que se associa à direita, seja quem sempre mais trabalhou com os pobres? Há alguém com juízo que associe cultura e trabalho intelectual só à esquerda?

Bom, à esquerda já (atente-se outra vez ao já) perceberam (bem, nem todos) que à direita se lê, pensa e escreve muitas vezes melhor do que à esquerda; que se viaja, que não se é paroquial nem snob. Mais um ano esforçado ou dois e talvez logrem entender que, apesar de a direita ter evoluído muito, nada disto nasceu de geração espontânea. Que o país hegemonicamente de esquerda é um mito e a superioridade intelectual e das sensibilidades da esquerda outro ainda maior.