Diz-se que Portugal é um país de brandos costumes. Será? Parece-o cada vez menos, a crer no nível do debate no espaço público, com espaço na antena, linhas nos jornais, bites na internet.

Refiro-me ao recurso cada vez mais frequente ao insulto, velado ou nem por isso. Da escalada rápida de qualquer discussão entre publicistas (i.e. “escritores públicos”), que de uma normal troca de ideias, logo descamba numa lamentável troca de agressões verbais tão graves que, nos tempos já esquecidos em que a honra contava, decerto ditariam reparações físicas.

Não creio que seja preciso dar muitos exemplos, pois todos quantos lemos artigos e crónicas, bem como as sequelas na Internet, temos presente esses episódios, cada vez mais frequentes. Os epítetos variam do boçal – cretino, atrasado mental, idiota – ao sofisticado, que são muitas vezes verdadeiros assassínios de carácter. E o que se escreve nos órgãos de comunicação tradicionais, logo extravasa para as redes sociais e respectivas caixas de comentários, onde o tom sobe para além do imaginável – do bom gosto, do decoro social e da decência.

Há alguns anos um inquérito revelou o que pensavam os portugueses sobre a forma de conduzir dos seus compatriotas: 85% achava que 90%, ao contrário deles próprios, conduzia muito mal. Pois parece que 85% dos cronistas e “fazedores de opinião”, “achando-se” cheios de razão, “acham” que os restantes 90% não têm razão nenhuma (eu incluído, naturalmente).

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Claro que a crítica é positiva. Claro que o recurso à ironia e ao sarcasmo ocasional são saudáveis e até recomendáveis, sob pena do espaço público não passar de um espaço púdico, sem graça ou imaginação. E Portugal tem tradição no sarcasmo desde as cantigas de escárnio e as de maldizer: “dona fea, nunca vos eu loei; en meu trovar, pero muito trobei; mais ora já en bom cantar farei; en que vos loarei; e direi-vos como vos loarei: dona fea, velha e sandia!”.

Em Portugal escreveu Eça As Farpas, Almada o Manifesto Anti-Dantas, Saramago o Evangelho Segundo Jesus Cristo. E fez Solnado rábulas sobre a guerra já a guerra espreitava (estreia em Outubro 1961): “e diz o tenente, “como é que você mata só com uma bala?”, e eu expliquei, “disparo a espingarda e vou a correr buscar a bala”, aí diz o capitão, “e a guerra pára de dois em dois minutos por sua causa?”, diz o sargento, “olha, ata-se com uma guita e depois puxa-se a guita!” e diz o capitão, “pois, depois parte-se a guita, perde-se a bala, perde-se a guita. É só prejuízo”; e criou Herman José personagens imortais – mais de maldizer que de escárnio – como Tony Silva, Estebes, Serafim Saudade; e outros, tantos, de Nicolau a Araújo Pereira.

Mas uma coisa é ter graça, outra é (querer) ser engraçado; ironizar – ou ter falta de gosto; escarnecer – ou insultar. Uma coisa é um espaço público criativo, imaginativo, crítico qb., com farpa, com chiste, com acinte. Outra, muito diferente e pior, é a crítica descabelada e feia, grosseira, sem nada senão o insulto gratuito, gerador de reacções que, em geral, só cavam ainda mais o buraco. A diferença é entre um espaço público e um espaço pútrido.

O leitor já consultou o seu facebook hoje? Leu crónicas e os comentários que as acompanham, até os deste jornal? Consultou mensagens de twitter, como aquela em que há uns dias alguém (não lhe farei o favor de escrever o nome) comentava, a propósito da morte de uma figura pública: “já o posso desbloquear”? Percebe-se que não gostava dele, mas podia ter sido mais gentil. Assim, foi só pouco caridoso.

Uma consulta às redes sociais, aos blogs, às dezenas de publicações e partilhas das mais diversas proveniências, revela-nos o que vai na alma de tanta gente neste nosso país pequeno e amável. Multiplicam-se os escritos de ódio e as entradas maledicentes; somos gentis com os nossos amigos do Face – ou os nossos seguidores no twitter -, pouco caridosos com a população geral. Cada vez mais dizemos mal de tudo e de mais alguma coisa, sem pudor, sem graça, em boa parte, é certo, por causa da clubite partidária maniqueísta que tomou conta do espaço público. Outra parte destina-se aos nossos inimigos de estimação, os políticos. Quem o quer ser tem de ter a pele dura, pele de elefante. Não estão isentos de erros, muitos abusam e confundem ter poder com ser poder, merecem crítica, mas talvez não tão dura, não tão baixa, não tão meramente conjuntural e desbragada.

Mas o verdadeiramente interessante, o que quase nos tira a esperança no ser humano e nos leva a ter vontade de voltar à idade da pedra da comunicação – desligar a Internet, afogar o smartphone na fonte próxima, deixar cair em cima da televisão um jarro de água gelada – são os comentários. A caixa de comentários. Eu diria, se fosse sociólogo, que não sou, que cada caixa de comentários é um tratado de sociologia em si mesmo.

Os insultos. O primarismo mais elementar, o maniqueísmo mais grosseiro, num português renitente à gramática e ao dicionário. E a tudo isso se chama “espaço público” e a tudo isso se chama “liberdade de expressão” e a tudo isso se chama “direito à opinião”. E é tudo verdade, ponto por ponto: no espaço público, o direito à liberdade de expressão permite a qualquer pessoa exprimir opinião. Livremente. Ponto por ponto, é tudo verdade: o espaço é público, o direito é fundamental e a opinião é livre. Mas tudo junto, lamento, não funciona. Se o espaço é público – frequentado por todos ou podendo sê-lo -, não deve quem o frequenta ser agredido com opiniões chauvinistas, odientas ou simplesmente malcriadas. Se na rua, na escola, no trabalho, nos confrontarem com termos e expressões semelhantes, que fazemos? E se esse comportamento for recorrente e agressivo – se for “bullying” – que fazemos? É crime, não é?

Pois dizem-nos que o temos de aceitar no espaço público a que chamamos Internet, redes sociais, blogs, caixas de comentários. Parece normal chamarem-nos “besta-quadrada”, entre as coisas meigas que alguns internautas atiram aos interlocutores ocasionais. Dizem-nos que podemos bloqueá-los, não os frequentar, fechar olhos e ouvidos à torrente malcriada que percorre as veredas das novas formas de comunicação. Infelizmente, não podemos; o que sai pela porta, entra pela janela. As redes sociais, em particular, entre nós, o Facebook, não são locais privados onde podemos dar largas à nossa imaginação e, para alguns, má criação, mas meios de comunicação públicos que rapidamente dão a volta ao Mundo, se preciso for.

Já aqui dei o exemplo de Justine Sacco, cuja carreira ficou arruinada por uma infeliz escolha das palavras; se o tivesse feito nos tempos A.I. (antes da Internet), a frase não passaria de um disparate racista sem consequências. Mas não foi e, apesar do pequeno número dos seus seguidores, o que disse no twitter “a viajar para África. Espero não apanhar Sida. Estou a brincar. Sou branca!”, desencadeou uma tempestade global que levou ao seu despedimento. Noutras geografias, o abuso de linguagem nas redes sociais já causou condenações. É o fenómeno dos “trolls” na Internet, que não pára de crescer, ameaçando arruinar as redes e expulsar quem as frequenta com gosto pelo extraordinário progresso que representam: como escreveu Joel Stein no Times em Agosto de 2016, “eles estão a tornar a web numa fossa séptica de agressão e violência. O que assistir a isso nos faz pode ser ainda pior”.

O problema não é só dos países anglo-saxónicos. Em Portugal, também, cada vez mais gente se acha no direito de dizer o que lhe vem à cabeça, sem respeito pelo semelhante. E nem falo do que se escreve por mera ignorância e simultâneo convencimento de grande merecimento, refiro-me apenas ao abuso puro e simples, ao insulto gratuito, ao bullying digital. Que fazer? Resistir, claro. Denunciar os abusos. Explicar que as redes sociais não são privativas de ninguém e ninguém tem direito de escrever o que lhe apetece, sobretudo mensagens de ódio e perseguição, mesmo que seja em nome da liberdade de expressão.

Explicar que o espaço público não é um espaço pútrido, mas um espaço para a opinião livre, fundamentada, inteligente e, sim, irónica, até sarcástica, mas sempre nos limites da decência.