São férias e há algum tempo livre. Uma pessoa senta-se com uma pilha de jornais meio-lidos à frente e começa a folheá-los. A pouco e pouco é invadida por um sentimento estranho, um sentimento de irrealidade. Porquê? Porque quase toda a gente que dentro daquele monte de papel se queixa de coisas vagas ou precisas o parece fazer a partir de um lugar que não é deste mundo, um lugar sem meios-termos onde reina uma perfeição ideal que se sente torpemente atraiçoada.

Há lamentos genéricos sobre as dificuldades da existência nos tempos presentes. Aqui convém distinguir, e Deus me livre de pretender que a vida anda fácil. Mas há coisas que roçam o incompreensível. Que os mais pobres e desfavorecidos se lamentem, eis algo que só se pode compreender inteiramente. Que as várias corporações reclamem, vá lá que vá, está na ordem das coisas. Que os artistas se queixem, também está na ordem das coisas, e propicia, de resto, momentos inesquecíveis, como a recente “performance Artivista” no Museu Nacional de Arte Antiga – em nome, claro está, da Cultura e da Constituição. “Os nossos sonhos não cabem nas vossas urnas”, dizem os “artivistas”. E dizem, como sempre, bem. Agora o que é extraordinário é que o PS ande para aí a falar da tristeza que por cá grassa e a acusar o Governo de, através de turpitudes sem conta, a ter voluntariamente engendrado. Não tiveram qualquer responsabilidade em termos chegado aqui? Os anos de Sócrates – uma longuíssima e sistemática corrida para o precipício – não existiram? Só há uma explicação: o PS habita um mundo diferente do do comum dos portugueses. Não seria melhor que tentasse aproximar-se deles? Era.

Os acordãos do Tribunal Constitucional também vêm de outro mundo. Contrariamente a Helena Matos e a José Manuel Fernandes, não os li integralmente. Até porque, sinceramente, creio que teria muita dificuldade em os perceber. Limitei-me a excertos. Se a literacia económica daqueles portugueses que têm algum tempo livre e curiosidade, sofreu, por força da crise, alguma melhoria – que o Tribunal Constitucional procurou à última hora acompanhar, gastando “muito dinheiro” em “livros de economia” -, a literacia jurídica não. E a linguagem dos acordãos contribuiu certamente, na sua modesta medida, para este facto. Os acordãos forçam a interpretação da Constituição num sentido ideologicamente determinado e, sobretudo, exibem, com orgulho, uma olímpica indiferença pela situação concreta do país. Aparentemente, a maioria dos juizes vive num universo ideal com uma correspondência aleatória com o nosso. Talvez fosse melhor para todos que descessem um bocadinho até aqui, perto de nós.

A União Europeia costuma também suscitar certos voos em direcção ao ideal. A tristíssima figura feita recentemente e de forma repetida por Maria João Rodrigues é, e esqueçamos o caso pessoal, sobretudo ilustrativa do tipo de delírios próprios a uma certa (não a toda, é claro) burocracia europeia que se julga a vanguarda da humanidade e detentora dos mais absolutos méritos intelectuais. O grau de arrogância daquelas cabeças que se propõem educar os povos europeus atinge alturas improváveis e mete medo. A crença na omnipotência do pensamento – a crença na capacidade de a mente humana, por virtudes intrínsecas da sua vontade própria, agir magicamente sobre a realidade – encontra um afável acolhimento na União Europeia. O que aconselhar a alguns dos iluminados que por lá andam, quando a distância entre a realidade e o ideal é demasiado manifesta? Que, como dizia o outro, mudem de povos? Que decretem a perfeita indiscernibilidade em costumes, cultura e outras coisas assim, de todos os europeus? Não seria bem melhor, que, ao contrário disso, dessem mais atenção às diferenças e não imaginassem tudo quadriculadamente idêntico e posto em movimento pelo sublime sopro do seu espírito? Era, pois.

E que dizer das reacções aos últimos desenvolvimentos da imensa trapalhada BES/GES? Meio mundo decidiu cair em cima do Governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, acusando-o de falhar a supervisão. Não me custa admitir que várias críticas sejam pertinentes e exactas. Mas a dimensão delas, bem como, na maioria dos casos, a sua proveniência, tem tudo para nos deixar sonhadores. Porque elas vêm, em grande parte, de gente próxima de um Governo que contribuiu para a promiscuidade dos negócios e da política com um zelo e um profissionalismo à prova de bala (algo que o próprio António José Seguro indirectamente referiu, a propósito de certos apoiantes de António Costa) e cujas relações com o BES eram públicas e notórias. Por outras palavras: o exercício da crítica é aqui – em grande parte dos casos, repito, não em todos – levado a cabo por gente que, para o fazer, tem de se transplantar para um qualquer lugar longínquo onde possa reciclar a sua virgindade.

Isso invalida a eventual justeza das críticas? Não, é claro que não. Mas, no próprio momento em que são feitas, elas revelam-nos o propósito de quem as faz: o de emigrar para um lugar ideal e descomprometido da realidade. No fundo, é essa a função das célebres “narrativas”: organizar os elementos da nossa história recente de acordo com um padrão que lhes confira um sentido inteiramente diferente da percepção partilhada das coisas. Um sentido que, é claro, não cola de todo com o que efectivamente se passou. Aqui, francamente, uma pessoa perde a paciência e a única vontade que se tem é de puxar certa gente pelas orelhas e levá-la a ver a relação directa entre as suas acções e uma boa parte da nossa situação presente. Porque por si mesmos não parece que estejam dispostos a fazê-lo.

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