1. O país politicamente correcto conseguiu um feito notável: a tempestade dos indignados com o infelícissimo – e nada inocente – dito de Dijsselbloem conseguiu – é obra! – ser maior, ter mais aparato, fazer mais ruído e produzir maior efeito que o dito e o seu autor juntos.

Que a extrema esquerda e a esquerda fizessem o seu previsível papel e saíssem a terreiro, os comentadores do costume dissessem o que deles se esperava , muitos soltassem lágrimas de crocodilo e outros mostrassem “serviço” nos diversos palcos que prestimosamente os acolhem, é natural. Nem toda a gente tem a independência de espírito pessoal e política de Jaime Gama que se limitou a sussurrar (Gama não fala, cicia) que Dijsselbloem tivera “ uma “boutade infeliz”.

Agora que um ministro (e logo dos Estrangeiros, pouca sorte nossa) que há tempos comparou a sede da concertação social a “uma feira de gado” e acha que a direita “se se porta mal, leva”, se indigne tão exuberantemente, compungidamente e (pior) sinceramente, reforça esta nossa triste percepção: podíamos estar mais bem entregues.

2. Se a tempestade fosse só a que referi, talvez só eu me entristecesse mas os tempos são de pura tempestade. Entre nós, há ainda crédulos que a vestem de bom tempo; na Europa é indisfarçada e indisfarçável. Quem se convenceu com os festejos (?) da passagem dos sessenta anos sobre o Tratado de Roma e as convicções empalidecidas dos promotores da efeméride? Quem se comoveu seriamente com as boas intenções – é verdade que o são mas não chegam e talvez não sirvam – publicitadas como “prioridades” pelos notáveis do costume, em abaixo-assinados do costume? Estou absolutamente certa que não teríamos vivido estes sessenta anos como eles foram e eu agradeço que tenham sido, sem o que alguns homens de visão e vontade puseram em marcha há seis décadas. Contra ventos e marés quero sem sombra de dúvida, continuar na “Europa” mas… o último toque a rebate deixa a desejar: “ritmos e intensidades diferentes”? Santo Deus, que péssima “nova direcção”. Acreditarão os seus mentores que este novo cimento sustentará os alicerces de um melhor futuro “comum”? Talvez acreditem na bondade da ideia. Mas enquanto os “grandes” continuariam com lugar assegurado na mais conveniente “velocidade” entre os vários “ritmos”e “intensidades” agora sugeridos , Portugal seria chutado para canto (peço desculpa da linguagem). Talvez mesmo para fora do relvado, quem sabe até impedido de jamais voltar ao banco.

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Para que o país se mantivesse à tona neste novo cenário era preciso nascer outra vez: vontade em vez de imobilismo, convicção em vez de instalação, visão em vez de presunção, coragem em vez de cedência. Era no fundo e em resumo, preciso ser capaz daquilo que rarissimamente é capaz. Entregue a quem está, iludido, irrelevante, pobre ( e mal agradecido) se a receita das “diferentes intensidades” se institucionalizar como parece, terá que se inventar vocábulo mais forte que tempestade.

Nada disto contradiz porém ser obviamente este o momento “H” para agir e reagir, as efemérides alguma coisa terão de ter de bom. Tudo menos o que está e como está – indecisão, ambiguidade, descoordenação, impasse. É preciso sair do meio da ponte e avançar. Mas se me perguntarem se estou esperançada sobre o discernimento em curso, não estou. E se me assusto com a incapacidade dos lideres em perceberem a importância da re-invenção da política, sim, assusto.

3. As tempestades têm graus e alertas como nos anúncios do mau tempo nos distritos . A falência da política como a conhecemos há décadas nas dantes apelidadas “democracias de tipo ocidental” justifica o alerta vermelho. O centro político some-se diante dos nossos olhos como uma onda a morrer na praia: aos solavancos mas irreversivelmente. Os partidos cujo eleitorado – à esquerda ou á direita – abrange ou inclui parte do centro, parecem estilhaçar-se enquanto sem eira nem beira, nem votos, nem destino, agonizam á porta do novo mundo de quem ninguém tem a chave. Macron talvez ganhe as eleições francesas porque convenceu os franceses de que “não faz parte do sistema” (embora faça).

Não sei caracterizar a deserção de que os partidos tradicionais são alvo e vitimas- e não basta insistir nos erros cometidos – nem contabilizar os estragos que ainda estão para vir mas o pior é que eles também não sabem. Basta só pensar na sombria tensão com que se aguardam as eleições em França e na Alemanha; a aflicção que causam seres como Erdogan ou Putin, a desconfiada expectativa com que se olha para Trump esperando melhores dias que não virão. Em suma, há um desconhecido inconforto que passou a ser a nossa nova condição de vida.

4. Detesto o inverno. Morada de tempestades. E de dias magros, que de repente se esvaem, cortados por laminas de tristeza fininha, uma inarredável melancolia a tingi-los. Uns atrás dos outros, baços e iguais.
Mal soa, nos Outubros, aquela maldita mudança da hora que nos mergulha nas trevas e aí estou eu a caminho da mais despida, mais desapiedade das estações até ficar totalmente prisioneira dela. Vivo rodeada de gente que lhe acha encantos, evocando serões aconchegados ou as doces horas de ócio de que o inverno é amigo; o gosto pelo frio, as lareiras acesas e as conversas que elas espevitam, livrarias, museus, casacos, lãs. Roupa em demasia. Trocarei sempre qualquer dessas coisas, todas elas, pela mudança da hora, nos Marços. E pelo que se segue: os dias a abrirem como flores, o princípio das manhãs na primavera, o cheiro da noite em Julho, uma esplanada sobre a água, sandálias, um banho de mar, o cheiro a iodo que se liberta das ondas do Atlântico. E se houver por perto uma duna com cheiro a esteva, sei que estou às portas do paraíso.

Tudo isto para dizer que no último domingo bem quis festejar a tão auspiciosa data da mudança da hora. Abrir um bom vinho, sair para a rua, correr, rir, ir ao mar. Aperceber-me do nervo e do fulgor do recomeço, levo o ano à espera do dia em que adiantar o relógio me faz ter mais dia. Estar mais perto da luz do que da sombra, que o mesmo é dizer mais perto da vida do que da morte.

Mas no domingo, uma brutal tempestade interditou o festejo. Nuvens plúmbeas, frio até ao osso, ventos zangados, o céu a desabar em água, estrelas em fuga. Uma inclemência parecida com a ira que Deus às vezes sente. A tempestade capturou-me o brilho da festa que o dia da mudança da hora de verão pedia, permitia e merecia.

E só há um por ano.