As duas testemunhas principais da queda do Grupo Espírito Santo foram ouvidas no mesmo dia, por insistência dos deputados da comissão parlamentar de inquérito aos atos de gestão do Banco Espírito Santo e do GES. Estiveram horas ao mesmo tempo no Parlamento, mas não se cruzaram.

A audição de Salgado durou dez horas. O primo já esperava numa sala ao lado, quando o ex-presidente do BES optou por alongar ainda mais as respostas que deu sempre num tom pausado. Ricardo Salgado guardou para o final as alfinetadas a José Maria Ricciardi, depois de ter dito que não iria criticar a família.

Da maratona de quase 17 horas no Parlamento ficam dois diagnósticos muito diferentes do colapso do BES e do grupo. Muitas vezes contraditórios, raramente coincidentes e sempre diferentes. As respostas dadas não esclarecem todas as perguntas essenciais e lançam mais pistas para a investigação parlamentar. O Observador traça-lhe um quadro geral e aponta-lhe as próximas audições a seguir.

Porque caiu o BES

Para Ricardo Salgado foi a falta de vontade do Estado, que recusou dar apoio financeiro ao grupo, e do Banco de Portugal, que não deu tempo, que levaram à derrocada do Grupo Espírito Santo (GES). A tese que o ex-banqueiro levou à Assembleia foi, assim, esta: Foi a queda do GES que arrastou o BES e era inevitável o tal efeito sistémico para o qual alertou todos, desde o primeiro-ministro até ao presidente da Comissão Europeia. A sentença de morte do grupo e do banco foi a incapacidade para realizar o aumento de capital da Rioforte, holding do GES.

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Porém, para José Maria Ricciardi, o BES poderia ter sido salvo se a família, da qual faz parte, tivesse deixado cair o grupo. O presidente do Banco Espírito Santo Investimento (BESI) comparou a crise no GES ao incêndio no último andar de um prédio de quatro andares que se deixou alastrar para os pisos de baixo: a Rioforte, a Tranquilidade, o BES e os seus clientes. Ricciardi defende que a insolvência da Espírito Santo Internacional (ESI) poderia ter contido a cadeia de transmissão – e pelo menos teria conseguido salvar o banco.

O papel do Banco de Portugal

Ricardo Salgado responsabilizou várias vezes o regulador pelo desfecho do BES. Antes de mais pela falta de tempo dada ao grupo para refinanciar a dívida que tinha de ser retirada dos clientes e pelos prazos e planos “inexequíveis” que impôs à sua gestão e à de Vítor Bento para a recapitalização. Acusa ainda o governador de não lhe ter pedido de forma clara e direta que se afastasse e de ter mudado de opinião sobre a sucessão e o modelo de “governance”, o que deixou o BES no limbo durante semanas cruciais. Os ataques do ex-presidente do BES suscitaram uma resposta de 17 páginas de Carlos Costa – incluindo cartas onde deixou explícito a Salgado que não dava por aceites os nomes antes de uma avaliação de idoneidade dos novos membros indicados (como Amílcar Pires).

José Maria Ricciardi defendeu a intervenção do regulador em todo o processo. Para o gestor, a estratégia de “ring-fencing” (blindagem) entre o banco e o grupo era adequada e ainda poderia ter feito a diferença se a família tivesse atacado logo a dívida das “holdings” familiares. A falência da Espírito Santo International era quase inevitável, mas ainda teria sido possível vender os ativos da Rioforte e o próprio BES por um prazo e o um preço que permitiriam pagar aos credores. Perdia-se o capital, mas salvava-se o nome e o banco.

A ajuda do Estado durante a intervenção da troika

Ricardo Salgado descartou a necessidade do BES usar os dinheiros da troika quando o BPI e o BCP recorreram esta ajuda em 2012. Por um lado, o BES conseguiu sempre levantar capital privado. Por outro lado, o banco não teve de absorver perdas com a exposição às dívidas públicas grega, irlandesa e italiana. O BES foi conservador nesses investimentos. Mesmo na desesperada fase final, Salgado nunca pediu dinheiro público para o banco, mas sim um empréstimo de 2,5 mil milhões de euros para dar um balão de oxigénio ao GES.

José Maria Ricciardi defendeu exatamente o contrário. O presidente do BESI disse que se o BES tivesse recorrido à ajuda do Estado, a partir da crise de 2008, a família teria diluído a sua posição, mas isso travaria o aumento do endividamento do grupo e imporia maior transparência na gestão do banco. As holdings do GES tiveram de pedir emprestado para acorrer aos aumentos de capital do banco, o que contribuiu para o descontrolo do endividamento nas holdings de topo. Só os juros associados à dívida da ESI custariam 300 milhões de euros por ano. Sem dividendos para os pagar era preciso pedir mais dinheiro só para pagar a fatura dos juros.

Quem mandava no BES

Ricardo Salgado não descarta a sua responsabilidade pessoal, mas insiste em estendê-la a todos os membros da família e da gestão do grupo. Invocou uma carreira de sucesso de décadas e a sua total dedicação à área financeira, sugerindo que não era o principal responsável pela área não financeira onde surgiram os problemas. Salgado apela ao consenso solidário, lembrando que o grupo era composto por cinco grupos paritários e ninguém tinha supremacia de voto. As contas e decisões foram sempre aprovadas por todos. E o contabilista? Machado da Cruz agiu por sua iniciativa, embora Salgado admita que a ocultação da dívida da ESI terá sido feita com intuito de ajudar o grupo.

José Maria Ricciardi recusa a responsabilização coletiva e a condenação “sanguínea” da família. Puxou dos galões quando repetiu ter sido o único membro dos órgãos do BES e a da própria família a denunciar situações suspeitas e irregularidades aos supervisores. Lembra que foi o único a tentar afastar Salgado e que por isso foi ameaçado de demissão várias vezes. Ricciardi não têm dúvidas de que a gestão do BES era o “one man show”, sublinhando a”gestão absolutamente centralizadora” de Salgado. A “liderança em vez de enfrentar os problemas, adiava, dissimulava e ia criando uma bola de neve”. Este será um tema obrigatório nas próximas visitas à comissão de inquérito.

Quem sabia do buraco do ESI

Ricardo Salgado não se afastou da teoria que defendeu na única entrevista que deu após conhecidas as irregularidades nas contas da “holding” Espírito Santo International (ESI). Reconhecendo a fragilidade da gestão do grupo, voltou a remeter responsabilidades para o contabilista, apesar de admitir que a atuação de Machado da Cruz (de ocultar dívida desde 2008), teria sido feita para ajudar o grupo. Mesmo confrontado com as declarações do contabilista feitas em abril a um escritório de advogados do Luxemburgo que envolvem Salgado e José Castella (o responsável pela compliance do GES), Salgado remete para a versão dada depois por Machado da Cruz à auditoria da ESFG em que assume todas as culpas e garante: “Nunca dei instruções para ocultar passivo.

Ricciardi descarta qualquer conhecimento prévio das irregularidades na ESI. Lembra que só entrou para a administração desta “holding” não financeira no final de 2011 e que sempre pediu mais informação. Mas, assegura, o presidente do BES era o único com quem falavam Machado da Cruz e José Castella. Ricciardi mostrou-se surpreendido com a tese de que a culpa era do contabilista (Machado da Cruz era contabilista da ESI, empresa onde foi descoberto passivo oculto). Ricciardi desconfiava do nível de endividamento do grupo, que era “preocupante”, mas nunca lhe passou pela cabeça que houvesse uma dívida escondida de mais de mil milhões de euros. Assim que lhe chegaram provas sobre as irregularidades, denunciou-as ao Banco de Portugal, em carta com data de maio de 2014.

Um ponto adicional, que tem a ver com as razões para tal problema financeiro ter aparecido em 2013. Na narrativa de Salgado, o problema da ESI apareceu sobretudo na sequência de problemas de consolidação de contas do grupo, como passivos que não estavam devidamente registados nas contas. E também pelo efeito da crise financeira, que aumentou o endividamento. Ricciardi, porém, acrescentou um ponto: um pagamento à Eurofin, que disse ser, “em números grandes”, de 800 milhões de euros naquele ano, sem que alguém o tivesse explicado. E ainda aponta um descontrolo de gestão, que depois levou – acusa – à “ocultação de passivos”.

O descontrolo do BESA

Ricardo Salgado recordou o momento da abertura do BES Angola, assinalando que Álvaro Sobrinho, ao serviço do BES, “prestou serviços de forma absolutamente impecável”, daí o convite para liderar o banco em Angola. Mas a partir de certa altura, começámos a ter informações “estranhas” em Lisboa (Salgado não soube precisar a data mas terá sido em “meados da década”). “Começámos a ficar preocupados, a partir de 2009, a ver rácios de transformação a crescer”. Os créditos estavam a subir mais do que os depósitos. As perdas avolumaram-se, numa altura em que, segundo Salgado, Sobrinho nomeou uma cunhada para dirigir a concessão de crédito. Ricardo Salgado sublinhou contudo que o risco estava protegido pela garantia soberana do Estado angolano que seria accionada em caso de incumprimento dos créditos dados pelo Banco Espírito Santo Angola (BESA). A garantia foi dada em novembro de 2013. E antes? Deveria ter o BES provisionado o crédito? Salgado evitou responder e defendeu que foi a resolução do Banco Espírito Santo a criar o problema de colocar o BESA no Banco Mau, o que terá levado Luanda a retirar a garantia. Aliás, Salgado, considerou que “colocar a garantia no ‘bad bank’ foi um enorme insulto diplomático” para com o presidente angolano.

José Maria Ricciardi realça que até 2012 as contas do BESA eram boas, mas admite que desconfiava que havia descontrolo no banco em Angola. Enquanto o BESI, a que presidia, prestava contas regularmente ao BES, o BESA não o fazia. Álvaro Sobrinho só falava com Ricardo Salgado. Ricciardi admitiu ter ficado em “estado de choque” quando leu no Expresso o relato das atas da assembleia geral do BESA em que foi revelada a concessão de 5700 milhões de dólares de créditos sem garantia e clientes finais conhecidos “Pergunto-me a mim próprio para onde foi. Excedeu as minhas piores expectativas”, disse Ricciardi.

A Eurofin, buraco negro

Ricardo Salgado procurou desvalorizar as ligações do grupo com a sociedade suíça que foi intermediária das operações ruinosas com obrigações do BES. Salgado descreveu a Eurofin como uma sociedade financeira com vários clientes internacionais respeitáveis e investimentos em áreas como o termalismo. O GES era um cliente importante, reconhece, mas não o único, nem mesmo hoje. Sobre as obrigações, defende que a recompra, que custou centenas de milhões de euros ao BES, foi feita para proteger os clientes e nesse sentido estava a cumprir orientações do Banco de Portugal. Quem eram? Não residentes, comunidades emigrantes (p.e. na Venezuela). Foi tudo o que disse – acrescentando que não sabia quem mais.

Ricciardi, ao invés, diz ter percebido (avisado pelos auditores) que estas operações serviram para substituir a dívida do GES (que estava nos clientes) com obrigações do BES que, quando foram recompradas, “descapitalizaram o banco”. A operação, tal como a descreveu, terá sido mais ou menos assim: foram emitidas obrigações com cupão zero, a uma taxa elevada e a longo prazo (30 a 40 anos); Estes títulos foram adquiridos pela Eurofin que os recolocou na carteira dos clientes do BES a uma taxa mais baixa de 4%, substituindo dívida do GES. Com isto, os clientes adquiriram as obrigações a um preço mais alto. E aqui foram gerados os 780 milhões de euros de ganhos que se traduziram em prejuízos para o BES quando o banco recompra as obrigações. Estes ganhos/perdas seriam distribuídos por 30/40 anos, fazendo com que ninguém notasse que a operação de refinanciamento do grupo tinha sido feita à conta do banco. O presidente do BESI fez várias perguntas sobre a Eurofin, não percebia porque o GES investia nesta sociedade quando já estava com graves problemas financeiros.

E agora, quem se segue?

Depois de Pedro Queiroz Pereira, que esta quarta-feira é a única audição da comissão de inquérito, na quinta-feira os deputados vão ouvir Amílcar Morais Pires, o ex-braço-direito de Salgado que chegou a ser indicado para o substituir no BES. No dia 16 estão marcadas audições a Manuel Espírito Santo e José Manuel Espírito Santo Silva; no dia 17 a Pedro Mosqueira do Amaral. Um dia depois, a 18, será a vez de Álvaro Sobrinho, o homem que esteve à frente do BESA.

Ainda antes do Natal, a 22, serão ouvidos Joaquim Goes e Rui Silveira, ex-administradores executivo do BES.

Está também prevista para breve a audição ao contabilista, o homem que Salgado culpa pelo buraco financeiro na ESI, que agora disse à comissão de inquérito estar disponível para ir depor.