O Governo vai voltar a prolongar no tempo o pagamento de custos do sistema elétrico para evitar uma subida do preço da luz. Um decreto-lei aprovado esta quinta-feira vem permitir ao regulador recorrer à “aplicação de mecanismo que difere no tempo a repercussão de determinados custos nas tarifas da eletricidade”.

Dito de outra forma, quando estiver a preparar os preços da eletricidade para 2021 a ERSE (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos) poderá atirar para anos futuros os custos que deveriam ser suportados pelos consumidores no próximo ano. Isso já foi feito no passado, primeiro no Governo de José Sócrates e depois com Pedro Passos Coelho, tendo estado na origem na criação de uma dívida dos consumidores de eletricidade às empresas, sobretudo à EDP. Essa dívida chegou aos cinco mil milhões de euros em 2016, mas estava a cair todos os anos desde então.

Evolução da dívida tarifária da eletricidade e dos custos que são levados todos os anos às tarifas

O motivo é o mesmo: travar uma subida do preço da eletricidade, mas o Governo considera que isso não “agrava automaticamente a dívida tarifária” até porque existem outros fatores que “concorrem para a sua evolução, designadamente as medidas mitigadoras consignadas ao Sistema Elétrico Nacional” (contribuição extraordinária sobre as empresas de energia e a venda de licenças CO2, são os exemplos dados).

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Em resposta ao Observador, o Ministério do Ambiente e Ação Climática explica que este diferimento no tempo se aplica apenas aos sobrecustos com a produção em regime especial (PRE), onde estão os contratos mais antigos de energia renovável, sobretudo eólica. O objetivo é que estes custos possam continuar, “como até aqui, a ser alisados nas tarifas até um máximo de 5 anos”. A mesma fonte assume que “sem esta alteração, os sobrecustos com a PRE seriam integralmente repercutidos nas tarifas de eletricidade de 2021, o que, dada a sua expressão atual, iria gerar um aumento significativo das tarifas de acesso às redes”, que são pagas na fatura final da eletricidade.

Esta é uma decisão política justificada com os “efeitos adversos da crise pandémica Covid-19” que, refere o comunicado do Conselho de Ministros, “criaram pressão adicional e inesperada sobre as tarifas do setor energético”. E é conhecida semanas depois de ser revelada a descida do IVA em parte da fatura da eletricidade para as famílias a partir de dezembro.

Surge também depois de terem sido anunciado os preços baixos recorde obtidos no leilão de potência solar, e os benefícios futuros de centenas de milhões de euros para os consumidores.  Mas estes efeitos são a médio e longo prazo. No imediato, o ministério de Matos Fernandes e João Galamba é obrigado a agir e assegurar “as condições” para que os efeitos da “pressão inesperada” sobre os preços da eletricidade sejam minimizados junto dos cidadãos e das empresas”.

Não é certo, como diz o Governo, se o exercício desta possibilidade irá inverter a tendência de redução do défice tarifário verificada nos últimos anos, mas irá no mínimo travar o ritmo dessa diminuição da dívida que nas tarifas deste ano custou mais de mil milhões de euros.

E que efeitos adversos são esses?

Depois de numa primeira resposta ter remetido para a publicação do diploma, o Ministério do Ambiente e Alteração Climática acabou por esclarecer que “os efeitos adversos da crise pandémica da COVID-19 provocaram alterações significativas em variáveis de base para o cálculo das tarifas de eletricidade, como sejam o consumo de eletricidade ou os preços nos mercados grossistas”.

“A descida dos preços grossistas de eletricidade gera um aumento do sobrecusto da PRE, recuperado através das tarifas de acesso às redes, muito embora tenha um efeito positivo sobre a tarifa de energia. Já a quebra do consumo tem um efeito negativo sobre as tarifas de acesso às redes, que recuperam os custos com as redes bem como os CIEG (custos de interesse económico geral), maioritariamente de natureza fixa”. Este efeito já tinha sido aliás destacado pelo Observador com base num boletim da ERSE.

Antes de chegarem os milhões do solar, fatura das renováveis vai pesar mais no preço da luz

O efeito da pandemia até começou a ser positivo para os clientes da eletricidade já que a diminuição acentuada das cotações no mercado ibérico levou a ERSE a introduzir uma descida extraordinária das tarifas reguladas em abril de 3%, ainda que para a maioria das famílias com contrato individual esse efeito não se tivesse feito sentir na altura.

Apesar da descida de preços no mercado grossista de eletricidade em reação à paragem das economias ibéricas em abril e maio, a queda de consumo eleva a fatura para o sistema a médio prazo. Isto porque os custos fixos associados, por exemplo ao défice tarifário, ou aos sobrecustos com os produtores do regime especial, são diluídos por uma menor quantidade de eletricidade consumida.

Eletricidade. Preços baixaram no mercado, mas muitos consumidores terão de esperar por 2021 para pagar menos

O boletim da ERSE sobre o impacto da Covid-19 indica que nos primeiros seis meses do ano o consumo global de energia elétrica caiu 6%, face ao consumo observado no primeiro semestre de 2019. Os meses de abril e, sobretudo, de maio, em que se viveu o pico do período de confinamento da pandemia de Covid-19, foram os que registaram maiores impactos no consumo global, com quebras homólogas de, respetivamente, 14% e 16%. Por clientes, foram sobretudo as empresas as responsáveis por esta queda, já que a procura do lado das famílias até cresceu com o confinamento.

O parecer sobre duplo apoio às renováveis e o risco para os preços da eletricidade

Mas há outras “pressões” que resultam de decisões políticas ou da demora na execução dessas decisões. Uma delas resulta da medida adotada pelo anterior secretário de Estado da Energia de retirar aos custos a considerar nas tarifas de 2017 as ajudas públicas dadas aos produtores de energia eólica.

Esta iniciativa procurava corrigir uma “dupla subsidiação” dadas a estes produtores, por via de tarifas garantidas, acima do preço de mercado, mas também através de fundos públicos e comunitários aos investimentos realizados. Mas a conta nunca chegou a ser apresentada a estes produtores e as dúvidas sobre a validade jurídica desta exigência levaram o atual secretário de Estado da Energia, João Galamba, a pedir um parecer ao conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República.

Em entrevista ao Observador, o governante admitia, em fevereiro, que esses 140 milhões de euros contabilizados, mas não cobrados, eram um risco para as tarifas de eletricidade, mas sublinhava que havia outros fatores que iam no sentido contrário. Mas isto foi antes de chegar a pandemia.

Fonte oficial do Ministério da Ação Climática e Transição Energética confirmou ao Observador que o parecer da PGR sobre a “dupla subsidiação à produção de eletricidade em regime especial” já tinha chegado, mas não revelou o seu conteúdo, o qual se encontrava “em análise no Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Energia, com vista a aferir da sua homologabilidade”.

O conselho consultivo da PGR foi igualmente chamado a pronunciar-se sobre a devolução de mais de 70 milhões de euros pela EDP às tarifas, por causa dos ganhos em excesso nos serviços de sistema, uma medida que a ser executada teria um efeito positivo nos preços.