Cinquenta doentes sentados na sala de espera das urgências na área respiratória do hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, com pulseiras azuis e verdes — ou seja, doentes não urgentes. De escala, há apenas três médicos (um dedicado exclusivamente a doentes mais graves, com pulseiras amarelas e laranja). O resultado? Muitas horas pela frente para que os doentes sejam atendidos. Ao Observador, fonte do hospital explica que “a grande maioria das pessoas” tinha sido encaminhada para ali pela linha SNS24, sendo doentes sem critério para ser vistos num serviço de urgência. Este cenário em concreto viveu-se no início da semana, mas a aglomeração de pessoas sem resposta noutros serviços do SNS repetiu-se nos últimos dias.

Com “equipas reduzidas e profissionais exaustos”, nas palavras de quem conhece a dinâmica da urgência num dos hospitais da capital, o encaminhamento de doentes sem qualquer critério para as unidades hospitalares aumentou as dificuldades de gestão de um turno que já é tradicionalmente complicado. Depois da quadra natalícia, aumentam as idas à urgência, com menos profissionais de saúde a trabalhar — e a sobrecarga causada pela linha SNS24 veio piorar esse cenário.

Mas Lisboa está longe de ter sido caso único. Em Leiria, por exemplo, várias pessoas que estiveram em contacto com outras que testaram positivo à Covid-19, e que apresentavam sintomas ligeiros, contactaram a linha SNS24 à espera de indicações. Foi-lhes pedido que aguardassem uma SMS. Quando essa mensagem chegou, vinha com a indicação de que deviam dirigir-se às urgências do hospital, apurou o Observador.

Mensagem SNS24

Mostrar Esconder

Na sequência do seu contacto com o SNS24 informamos que deverá dirigir-se a ADR-SU Hospital São Francisco Xavier (Lisboa) (21 043 1000) Todos os dias das 00:00 às 00:00 sito na morada estrada Forte do Alto Duque. Obrigado

Mensagem que vários doentes que acorreram às urgências do hospital em Lisboa receberam nos telemóveis a que o Observador teve acesso

Sem diagnóstico positivo para a Covid-19, mas com contacto com um caso confirmado, quem tem ligado para a linha SNS24, relatando ter alguns sintomas ligeiros — mesmo que uma ligeira tosse, por exemplo –, tem recebido depois mensagens semelhantes à que o Observador reproduziu, mudando apenas o serviço de urgência e centro hospitalar a que se devem dirigir, em função do local em que se encontram.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O próprio secretário de Estado Adjunto e da Saúde Lacerda Sales admitiu que a linha SNS24 terá encaminhado para os serviços de urgência doentes sem critério para serem admitidos neste tipo de serviços. “É provável que tenha acontecido”, disse na RTP1, acrescentando que está a acontecer um trabalho de “simplificação de algoritmos”, sem esclarecer o significado prático dessa simplificação.

Utentes encaminhados pelo SNS24 às urgências depois de ligarem com resultado positivo num autoteste

Alguns dos casos que nos últimos dias chegaram às urgências de doentes respiratórios do hospital Santa Maria, em Lisboa, foram encaminhados pela linha SNS24 depois de terem ligado para esse serviço em busca de alguma orientação sobre o que fazer depois de um resultado de autoteste positivo feito em casa.

A situação é relatada ao Observador pela diretora do Serviço de Urgências do hospital, Anabela Oliveira, que diz inclusivamente já ter chamado a atenção do SNS24 para um “encaminhamento exagerado de doentes” nos últimos dias e que está a adensar os constrangimentos nas urgências dos hospitais.

“Já chamei a atenção do SNS24. Está a acontecer um encaminhamento exagerado de doentes ou utentes com sintomatologia muito ligeira, e mesmo para confirmação de testes e autotestes [feitos] no domicílio para o serviço de urgência“, explica Anabela Oliveira.

Também no hospital Santa Maria, a falta de profissionais de saúde já se faz notar. “As equipas estão desfalcadas, não só de médicos, mas de enfermeiros e assistentes operacionais. Temos muita gente em casa, infetados ou contactos de alto risco, o que vai piorar na próxima semana e na primeira de janeiro”, antecipa a diretora, que já teve que abrir uma nova enfermaria esta semana para doentes infetados com a Covid-19 que viram a sua situação de saúde agravar.

Com a abertura de mais uma enfermaria, nota a médica Anabela Oliveira, a área de internamento de doentes não Covid-19 diminui e a falta de recursos humanos tem sido uma preocupação constante nos últimos dias, com o aumento de pressão nos serviços. “[Devido ao] tempo de isolamento, tal qual como temos atualmente — e ao contrário da aviação, em que os voos são cancelados, aqui não podemos cancelar voos por falta de tripulação –, mas temos muita falta de recursos nas equipas. É uma preocupação que nos assola a mente diariamente, à medida que nos aproximamos do período pior, que vão ser as primeiras semanas de janeiro”, apontou.

O Observador está a tentar, desde terça-feira, contactar a Direção-Geral da Saúde (DGS) para perceber se houve alterações nos critérios para que os doentes passassem a ser encaminhados para os hospitais e testados nestes nestes estabelecimentos. Mas, até ao momento, esses pedidos de esclarecimento não tiveram sucesso.

Desde o período antes do Natal que os centros de testagem, os laboratórios e as farmácias estão sobrelotados, e há várias pessoas com códigos do SNS24 para marcar testes de despiste para a Covid-19 que não conseguem realizá-los. A acrescentar às dificuldades em realizar teste, o Observador apurou ainda que há laboratórios que estão a demorar mais de 48 horas para entregar o resultado de um PCR.