A última semana trouxe as duas principais figuras do Estado em desacerto público. O Presidente a dizer que não havia volta atrás no desconfinamento e o primeiro-ministro a travar-lhe o otimismo. Para quem os viu, aparecem agora em lugares trocados: António Costa passou a comedido face ao otimismo do Presidente (que já considerou o do primeiro-ministro “irritante”). Mas esta dessintonia está longe de ser um simples estado de espírito; vem de um desencontro antigo: Marcelo quis mudar a matriz de risco e o Governo manteve-a, no essencial, nos moldes em que vigorava quando a vacinação no país estava praticamente a zeros. Marcelo tem pressa no passo seguinte do desconfinamento, Costa quer manter-se dois passos atrás.

Em maio, quando se aguardava o plano de desconfinamento mais geral, o Presidente ainda tentou influenciar a decisão que aí viria. Não era o único que queria que fosse alterada a matriz de risco e, no seu caso concreto, o que defendia era que passasse a ter em conta a progressão da vacinação no país.

“A matriz devia ter sido outra”, comenta-se ainda hoje em Belém perante a inflexibilidade do Governo quanto ao que determina o quadro que obriga semanalmente concelhos a congelar ou a recuar no desconfinamento, consoante o número de casos que apresentam.

Em maio, Marcelo foi claro sobre o que queria ver posto em prática: “Se houver uma taxa de imunidade cá dentro apreciável, há um momento a partir do qual não há razões em termos de vida e de saúde que justifiquem parar a economia e a sociedade indefinidamente”, afirmou.

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Mas a pressão presidencial não resultou numa mudança no quadro de risco traçado pelo Governo em março e as medidas que contam para confinar e desconfinar de cada concelho mantiveram-se as mesmas: incidência de casos por cem mil habitantes e ritmo de transmissão da doença. Na reunião que precedeu o plano de desconfinamento para o verão — e que Costa tinha pedido que já acautelasse o progresso da vacinação — os próprios especialistas normalmente ouvidos pelo Governo aconselharam a que a matriz se mantivesse inalterada.

A posição sobre o desenquadramento da atual matriz face à situação do país é hoje mantida pelo Presidente da República. Mas o entendimento do Governo não só é diferente, como António Costa não parece disponível para abrir qualquer exceção ao que está definido. É nesse contexto que devem ser lidas, por exemplo, as declarações do primeiro-ministro esta quarta-feira quando questionado sobre a necessidade de acelerar medidas em Lisboa (ver mais abaixo).

Não há tensão entre as partes, nem desentendimentos acesos — não é esse o registo desta coabitação — mas há o reconhecimento que não pensam da mesma forma nesta altura. Aliás, António Costa disse isso mesmo ainda no meio desta polémica, quando tentou deitar água na fervura da troca de declarações que já ia em crescendo.

Costa diz que não desautorizou Marcelo mas admite que não concordam

Para registo futuro, ambas as partes atribuem o grosso deste caso Belém/São Bento a “mal entendidos” e a perguntas que são feitas pelos jornalistas e que induzem respostas que se prestam a outras interpretações. Mas na génese deste caso está uma pergunta concreta sobre o desconfinamento, e bem aberta, a que Marcelo entendeu responder de forma equivoca, no domingo na Feira da Agricultura:

Já manifestou confiança que não existira retrocesso no desconfinamento apesar de números crescentes da pandemia. Este tipo de iniciativas também ajudam a criar esse espírito de esperança e resiliência? 
Esta feira corresponde ao meu discurso no dia 10 de junho. Disse: virámos a página, estamos num novo ciclo e esta feira é a prova disto. Já não voltamos atrás. Não há problema se se pode ou não. Não vai haver, não vai haver. Comigo não vai haver, naquilo que depender do Presidente, não vai voltar atrás”.

A pergunta era concreta sobre o momento o país enfrenta e Marcelo respondeu com uma declaração sobre o que entende que deve acontecer face ao desconfinamento em geral. Ainda que, a determinado momento, Marcelo detalhe que falava naquilo que depende de si — a única decisão que depende diretamente do Presidente é o Estado de Emergência –, não era isso que ali estava em causa, até porque o Presidente já tinha descartado o regresso a esse estado de exceção em maio.

As palavras foram ouvidas por António Costa que, quando confrontado com elas numa conferência de imprensa depois de uma reunião da NATO em Bruxelas, começou por dizer que o desejo do Presidente é “subscrito por 100% dos portugueses”, para logo depois perguntar e responder: “Se alguém pode garantir [que não se volta atrás no desconfinamento]? Não, creio que nem o senhor Presidente da República seguramente o pode fazer, nem o fez”. Foi o início do pinguepongue.

O caso não ficaria por aqui. Marcelo foi questionado, nessa mesma noite, se aquelas declarações de Costa eram uma desautorização e recorreu à Constituição para atirar um dos principais poderes presidenciais: o da nomeação do primeiro-ministro. Na resposta, Costa tentou pôr um ponto final no desaguisado. Foi o segundo momento de pinguepongue sobre o mesmo tema, com Costa ainda a vir, por uma última vez, agitar a bandeira branca sobre o assunto, garantindo “total sintonia” com o Presidente.

Pelo meio, fica o desentendimento que existe sobre as reservas face ao desconfinamento — está longe de ter sido o primeiro, já houve vários no decorrer da pandemia, a começar logo pelo inicial desentendimento sobre a necessidade de avançar com o primeiro estado de emergência, com Marcelo a querer avançar e Costa a não querer gastar todas as munições logo à partida.

Quando olha para os números, Marcelo está sobretudo focado na progressão dos internamentos e dos internamentos em cuidados intensivos, mais do que no disparar do número de casos. Esses também são os indicadores que, apesar de tudo, continuam a servir de argumento ao Governo para não saltar já com medidas intermédias em alguns concelhos, como Lisboa, mantendo a face na questão da matriz. “A situação é menos grave do que em fevereiro porque a população com mais de 60 anos está vacinada“, adianta fonte do Executivo. Mas pode haver exceções.

Lisboa em avaliação

Na região de Lisboa os casos dispararam nas duas últimas semanas e o calendário do Executivo fixa que apenas quando os concelhos ultrapassam por duas vezes seguidas as linhas vermelhas fixadas é que há uma ação concreta de recuo: “A matriz foi construída com base em dois indicadores fundamentais e é em função dessas variações que vamos aplicando as medidas que estão previstas. Todos os concelhos serão iguais para este conceito e Lisboa não será diferente e terá o mesmo tratamento dos outros concelhos”.

“O mecanismo da matriz é de salvaguarda, não são princípios de desconfinamento”, explica ao Observador fonte do Governo para explicar que a regra não seja alterada a meio caminho — Lisboa só esta semana está acima dos 240 casos por cem mil habitantes. “As pessoas têm de ter previsibilidade”, comenta a mesma fonte adiantando que, neste momento, “não há informação para fazer outra coisa que não o que está definido”.

O Governo pode não agir de mote próprio, mas qualquer autarquia pode pedir essa antecipação de medidas mais restritivas para o concelho — foi o que fez Sesimbra, que se preparava para avançar no desconfinamento com números preocupantes no concelho. Segundo apurou o Observador, no caso de Lisboa, essa possibilidade está a ser avaliada embora ainda sem uma decisão fechada no gabinete de Fernando Medina.

Neste momento existem quatro fases de desconfinamento. A mais recuada é a que se aplica a concelhos que em duas avaliações consecutivas apresentem taxas de incidência acima dos 240 casos por cem mil habitantes (ou superior a 480 nos concelhos de baixa densidade) e passa por teletrabalho obrigatório, restaurantes, cafés e pastelarias com horários até às 22h30 e aos fins-de-semana e feriados às 15h30, espetáculos culturais até às 22h30 e casamentos e batizados com 25% da lotação.

Para os concelhos — como Lisboa, Braga, Odemira e Vale de Cambra — com duas avaliações consecutivas com uma incidência superior a 120 casos por cem mil habitantes (ou superior a 240 nos concelhos de baixa densidade), aplica-se o o teletrabalho obrigatório, restaurantes, cafés e pastelarias com funcionamento permitido até às 22h30, espetáculos culturais com os mesmos horários e comércio a retalho com funcionamento até às 21h00.