Para António Barreto, a presidência da República é uma «esplendorosa ficção». Com efeito, desde a revisão constitucional de 1982 que acabou com o «Conselho da Revolução», entre outras melhorias, o exercício presidencial tornou-se uma completa «ficção». Se esta é «esplendorosa» ou não, já não tenho a certeza. Com efeito, a eleição directa para a presidência da República de um militar que assegurasse a transição do 25 de Abril para a democracia revelou-se absolutamente necessária mas, ao mesmo tempo, conferiu ao sistema semi-presidencial um carácter falso de dupla representação política ao mais alto nível do Estado.

Tanto assim que sempre fui, pessoalmente, contra a eleição directa do presidente da República, pois até o próprio General Eanes cedeu no final do seu mandato a essa «ficção» quando promoveu a criação de um novo partido, o qual levou à posterior queda do parlamento! Desde o início, pois, que o semi-presidencialismo personificado pela dupla eleição directa de ambos os agentes políticos criou, senão uma dupla liderança, pelo menos uma «ficção» como aquela que estamos a viver há cinco anos devido ao carácter do actual presidente que o primeiro-ministro não só não contrariou como apoiou ao sentir a falta de suporte parlamentar.

Eleitoralmente falando, António Costa está hoje para o actual PR como Hermínio Martinho estava para Eanes, mas Mário Soares não permitiu que ele chegasse ao poder (na altura não havia sondagens). Ora, o principal aspecto da eleição presidencial do mês que vem é, provavelmente, a mais alta abstenção do eleitorado português. O simples facto de a reeleição do actual presidente estar garantida desencoraja os eleitores de votar, a não ser que o governo invente à última da hora uma votação de porta a porta…

Segundo os dados oficiais, já nas reeleições de Sampaio (2001) e Cavaco (2011) a abstenção ultrapassara claramente os 50% e o mesmo se passou em 2016 com a eleição do actual presidente, o qual teve então menos de metade dos votos dos eleitores registados, devido quanto mais não fosse à chamada «abstenção técnica», isto é, aos falsos eleitores que os governos persistem em manter nos cadernos eleitorais!

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Apesar das aparências, o expectável é que o incumbente tenha uma percentagem menor – e não maior – do que aquela que teve há 5 anos. Por outras palavras, é mais provável os eleitores menos mobilizados do vencedor ficarem em casa do que os eleitores motivados pela ideologia de quatro ou cinco candidatos menores mas aguerridos. Paradoxalmente, a convicção generalizada de que o incumbente ganhará à primeira volta só pode desmobilizar muitos dos seus apoiantes assim como muitos dos que já interiorizam a derrota…

Recorrendo às melhores sondagens disponíveis, verifica-se que, para além de uma margem de erro relativamente elevada (mais ou menos 3,5%), os resultados apurados correspondem a pouco mais de um quarto dos inquiridos contactados (28%). Além disso, 25 a 50% destes últimos revelam ainda não ter decidido se votam ou não e, em caso afirmativo, em quem. Dito isto, os 800 respondentes não deixam de ser estatisticamente representativos da população portuguesa do ponto de vista sócio-demográfico. Em contrapartida, é de crer que não correspondam exactamente aos perfis político-eleitorais dos três-quartos da população que não responderam.

Entre outros possíveis factores, a abstenção é tendencialmente maior nos círculos eleitorais menores dado a grande percentagem de votos perdidos. Entretanto, se pensarmos num dos melhores estudos existentes sobre o comportamento dos eleitores perante as sondagens eleitorais, é lícito argumentar que os não-respondentes do presente inquérito optaram pela «espiral do silêncio» a fim de resistir à opinião mediática dominante. É em boa parte desta massa de eleitores que sairá a maior parte dos futuros abstencionistas!

Para concluir, a convicção generalizada de que o actual PR será eleito à primeira volta só pode contribuir para a abstenção. E se porventura houver segunda volta, ainda haverá tempo de votar. Junta-se a isso o facto de a actual pandemia continuar a fazer sentir plenamente os seus graves efeitos para lá do próximo mês, quer no plano pessoal como colectivo e quer no sanitário como no económico Tudo leva a crer, pois, que a abstenção será muito elevada (tanto ou mais de metade dos inscritos), pois o facto é que a votação para a presidência da República não poderá contribuir em muito para alterar a presente conjuntura angustiante por um longo período.

Assim, a ficção que efectivamente rodeia o papel do presidente da República, seja o actual ou outro qualquer, também só pode levar à abstenção, como aliás já se passou há cinco anos devido à ausência de uma forte participação do PS na corrida à presidência perante a popularidade mediática de um presumível adversário que afinal não se confirmou… A repetição destas ficções mediáticas não deixará de frustrar aqueles que esperam algo de novo da votação do mês que vem.