Faz parte das minhas rotinas profissionais passar uma parte do dia a trabalhar não muito longe de um ecrã de televisão ligado num canal de notícias. Bem sei que não é o mais recomendável para a saúde, pois a sucessão de indignidades a que facilmente se assiste facilmente nos revolve o estômago,

Foi assim que vi surgir a dada altura, com aquele ar compenetrado e concentrado que é a imagem de marca da dupla, uma das manas Mortáguas num cenário que tinha o Tejo por fundo. O oráculo informava que se tratava de Joana, a menos mediática, “vereadora da câmara de Almada”. Mas que, na ocasião, estava no Seixal. A fazer o quê? A lamentar a falta de barcos da Transtejo e da Soflusa, essa mesma falta de barcos que leva a constantes supressão de ligações e já motivou várias revoltas dos passageiros, a mais recente no início desta semana. Melíflua, Joana Mortágua culpava a falta de investimento público, começando por responsabilizar um governo que já não é governo há três anos, um projecto de concessão a privados que nunca se materializou e derramando algumas breves lágrimas de crocodilo sobre ter-se perdido tanto tempo nesta legislatura.

Ouve-se e não se acredita. Aquela mesma Mortágua, mais a sua mana, mais os seus companheiros do Bloco, andam há três anos a suportar as escolhas orçamentais que criaram o estrangulamento em que se encontram aquelas e outras empresas de transportes. Mais do que suportar essas escolhas, foram parte dessas opções e condicionaram-nas. Foi a esquerda à esquerda do PS que erigiu como primeira de todas as prioridades a “recuperação de rendimentos”, o que se deve traduzir por “recuperação dos rendimentos dos funcionários do Estado e das empresas públicas”. Não há outra coisa mais importante nos protocolos que assinaram com António Costa, não houve nada de mais constante no seu discurso.

Como tudo na vida essa escolha – que foi também a escolha por satisfazer a maior e mais reivindicativa clientela eleitoral do país – teve um custo: o dinheiro que foi para os “rendimentos” faltou para os “investimentos”. Como recorda a Helena Garrido, isso até já começou a ser assumido pelo primeiro-ministro, quando reconheceu que não é possível dar tudo a todos. A questão – e essa é sempre a grande questão quando falamos de políticas públicas – é se as escolhas diminuíram as injustiças ou, pelo contrário, agravaram as desigualdades. Hoje, três anos depois desta farsa se ter iniciado, o grau de degradação dos serviços públicos deixa cada vez menos dúvidas: há mais injustiça e mais desigualdades.

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E não, não é verdade que, como ainda impudicamente repetiu Joana Mortágua, o que se passa em serviços como os transportes fluviais do Tejo sejam uma consequência da anterior maioria ou maldades do tempo da troika. Hoje sabemos que nunca nenhum ministro das Finanças usou tanto as cativações como Mário Centeno – o que significa que nunca nenhum ministro mentiu tanto ao elaborar um Orçamento de Estado, prometendo ir gastar o que sabia que não podia gastar, nem tinha intenção de gastar. Mais: também sabemos que, nos dois primeiros anos desta maravilhosa geringonça, o seu tão amado investimento público caiu para os níveis mais baixos dos últimos 60 anos. Custa a crer, mas é verdade. A Joana viu e votou, a Mariana viu, negociou, inventou um imposto que até lhe ficou com o nome, assinou por baixo e, claro, votou. São tão responsáveis como António Costa pelas supressões diárias nas ligações da Transtejo e da Soflusa.

Não estivesse sentado no Governo um senhor chamado Pedro Nuno Santos e eu até diria que eram mais responsáveis – e di-lo-ia em função do seu discurso radical contra tudo o que seja concessão de serviços públicos a privados. Joana Mortágua, se não fosse uma fanática — pesei o uso desta palavra –, reconheceria que, na Margem Sul em que até é vereadora, o melhor serviço de transporte ferroviário é o assegurado pela Fertagus na ponte 25 de Abril – cumpre horários, praticamente nunca é afectado por greves, por exemplo. Mais: saberia que a generalidade dos autocarros que servem os concelhos da região são de empresas privadas, que têm contratos de concessão, e que do seu serviço não costumamos ouvir as queixas que ouvimos sobre o oferecido pela CP ou pelo Metro de Lisboa.

Mas que interessa a realidade às Mortáguas enquanto houver disponibilidade para escutar as suas ladainhas sem colocar as questões que têm de ser colocadas? Nada, na realidade. Basta de resto ver o mais recente debate entre Mariana Mortágua e Adolfo Mesquita Nunes na SIC Notícias – onde Mariana não foi capaz sequer de reconhecer que o investimento no SNS diminui, procurando sempre misturar investimento com os gastos decorrentes dos aumentos dos encargos com os funcionários derivados das “reposições” e das 35 horas – para perceber que a realidade é, passa o plebeísmo, “uma coisa que não lhe assiste”.

São também muito reveladores os malabarismos a que recorre, na sua coluna no Jornal de Notícias, para justificar a actual onda de greves na administração pública, que apresenta como “sinais de esperança e exigência”. O que é curioso neste artigo é que durante anos a fio ouvimos sindicalistas, activistas, mesmo bastonários das mais insuspeitas ordens profissionais, a defenderem que lutavam pelas mais nobres causas: “salvar o SNS”, “defender a escola pública”, “impedir a destruição do Estado Social”, porventura “barrar o caminho a retrocessos civilizacionais”. Ai de quem dissesse que se tratava por regra de defender direitos adquiridos, nada mais.

Eis agora que Mariana, num interessante flashback histórico, nos diz que afinal o que esteve sempre em causa foi mesmo tão só salvar “o que era seu por direito”. E que o que passou a estar em causa nas greves de hoje são “avanços e conquistas há muito esperadas”. Descontando o que aqui é linguagem que recorda o PREC, o notável é verificar que numa onda de dezenas de greves de afectam quase exclusivamente o sector público desapareceu por completo qualquer inquietação com a salvação desse mesmo serviço público, sinal de que na verdade nunca foi ela que esteve em causa.

Se as Mortáguas deste mundo estivessem inquietas com a qualidade do serviço público teriam ficado preocupadas com a admissão pela ministra da Saúde de que o Hospital de Braga pode deixar de ser gerido em regime de PPP. Esse hospital tem sido repetidamente distinguido como o que presta melhor serviço aos seus utentes, bastando lembrar que no mais recente SINAS, um estudo independente realizado anualmente pela Entidade Reguladora da Saúde, ele foi, nos dois últimos anos, o único do país com classificação máxima em oito áreas clínicas. Mais: um estudo da própria Administração Regional de Saúde do Norte concluiu que aquele modelo de gestão poupava ao Estado 33 milhões de euros por ano. Existindo, e cito, estas “poupanças muito significativas para o erário público” e esta “excelência clínica”, a preocupação deveria ser manter a PPP e não ver acontecer ao Hospital de Braga o que aconteceu ao Amadora-Sintra, um hospital que desde que, por razões ideológicas, reverteu para a gestão pública, não tem deixado de se degradar, e degradar, e degradar (fala um utente, para que se saiba).

Mas não: a obsessão das manas Mortágua, tal como da turbamulta do Bloco, é acabar com tudo o que seja sector privado, mesmo quando funciona bem, serve as populações e presta bom serviço público. É por isso que o ar condoído que mostram sempre que são confrontadas com as consequências das escolhas que decorrem de opções políticas que negociaram, nalguns casos impuseram, em todos os casos votaram e subscreveram, não são mais do que um mau exercício de cinismo e de hipocrisia.

Ao lado daqueles cartazes que andam a afixar com as suas “conquistas” deviam estar outros com o passivo que foram deixando pelo caminho, dos seixalenses apeados por falta de barco para chegarem a Lisboa aos habitantes de Vila Real em listas de espera de quatro anos em certas especialidades clínicas. De resto, por muito bem que falem, não esqueçam que podem enganar todos uma vez, enganar alguns toda a vida, mas nunca enganarão toda a gente todo o tempo. Nem duas mesmo Mortáguas em vez de uma só.