Numa crónica que escreveu em Outubro de 2005 para o Corriere della Sera, Claudio Magris faz menção aos heróis burgueses. O texto, juntamente com outros, foi reunido num livro de artigos seus que a Quetzal publicou e que se intitula ‘A História Não Acabou’. É preciso que se diga que o herói, para Magris, não exibe ‘músculos morais inchados com silicone’ nem é, necessariamente, vanglorioso ou vaidoso, antes e tão só ‘quem se opõe a um mal que parece irresistível e não admite oposição’. Acima de tudo é trágico porque, a maioria das vezes, morre ao se sentir forçado por quebrar aquilo que verga os outros. Para melhor exemplificar o seu ponto, Magris dá exemplos destes heróis que, apesar de agirem com uma simplicidade mortal, puderam escolher.

Nascido em Trieste em 1939, e carregado com as marcas históricas de uma cidade imperial (embora livre) entalada entre os Habsburgos e as guerras, Magris cinge-se aos heróis comuns que confrontaram o fascismo. O advogado que não assinou o pedido de clemência porque continha uma expressão para ele inaceitável, ou outro que não desistiu de ser honesto e pagou com a vida a fidelidade para com o que considerava certo. Gente normal, burguesa, que se mostrou capaz do grande feito que é serenamente escolher morrer num momento pontual e definitivo.

Para nós, Portugueses, é difícil conceber a luta fratricida que engoliu outros povos. Sem qualquer guerra no nosso território europeu desde 1834 (descontando certos conflitos armados com pouca expressão histórica), uma guerra no Ultramar de que não se fala, um povo e uma nação unidos debaixo de uma língua comum onde o que mais sobressai é o sotaque, cultura uniforme e ímpar quando comparada com o que sucede na maioria dos países, a violência tem sido, felizmente, pouco necessária. Aqui, sobreviver não implica matar. Nem morrer. Muito menos escolher.

Lembrei-me do texto de Magris ao pensar no que se vai assistir em Portugal, pois o pior está mesmo a chegar. Burgueses portugueses para quem a história não acabou e que vivem um heroísmo, o seu, que não se revela nem se publicita, mas que se sofre. Suporta-se. Não deve ser fácil manter a pose. A atitude correcta. A fleuma, se preferirem. Mesmo que à conta dessa abnegação tirem proveito os que não são heróis. A fibra necessária para se tomar a decisão correcta, no sítio e hora certa e não fazer alarde do feito. Um heroísmo que nem sequer devia ser para aqui chamado pois que a distinção não está na decisão heróica do acto, mas na desistência. A tragédia portuguesa é essa: aguentar em silêncio e de forma permanente.

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À conta desse sofrimento burguês (porque esta é uma crise que afecta primeiramente os empresários e os trabalhadores de certas áreas de negócio, como a restauração e a hotelaria), o Estado português vai receber os fundos que compõem a célebre ‘bazuca europeia’. Uma vez mais o poder político vai ter ao seu dispor mundos e fundos para distribuir. Planeia-se uma nova ponte no Porto, a expansão da rede de metro em Lisboa, milhões estão previstos para a ‘Justiça económica e ambiente de negócios’, a Administração Pública receberá a sua quota-parte no esforço da digitalização; até a Autoridade Tributária (cujo nome é todo um programa) receberá o seu quinhão, a par das infra-estruturas e da gestão hídrica e das florestas e do investimento e da inovação, uma panóplia de nomes e qualificações que mais não são que áreas cujos beneficiários serão determinados por burocratas.

Magris escreveu sobre os heróis burgueses, mas não referiu os Portugueses de tão peculiares que são, pois por cá o acto heróico não pressupõe morrer, mas definhar com dignidade, uma incongruência apenas possível neste canto europeu longe dos grandes palcos. Há uma aparente serenidade que não o é verdadeiramente, pois não é sangue-frio ou impassibilidade, antes uma desistência, abandono, uma certa dose de abdicação, o reconhecimento de um peso morto inamovível, poderoso, destruidor e porque sem nome, impossível de se apontar um responsável de tão diluído que este está no todo. Ao contrário dos heróis de Magris que escolhem, o heroísmo burguês em Portugal não é sereno porque não se concretiza em algo tangível. Não se esgota.

Quando era mais novo passei uns dias de férias na casa que a minha avó tinha na Beira Alta. Ficava numa quinta que fora do meu bisavô e que, fisicamente indivisa, a família utilizava com um todo. Numa tarde quente de Agosto nesses já longínquos anos 80, um tio-avô meu chegou com um casal austríaco acompanhado de dois filhos adolescentes, mais velhos que eu. Debaixo de uma tília centenária apresentou-mos dizendo que o senhor, o pai, era um austríaco judeu a quem, quando criança, o meu tio recebera em sua casa no decorrer da Segunda Guerra Mundial. Este, no dia em que nos cumprimentámos, teria cerca da idade que tenho hoje e decidira regressar a Mangualde naquele Verão para reencontrar os meus tios e apresentar-lhes a mulher e os filhos. Era um homem feliz. E naquele dia quente, debaixo de uma enorme árvore que murmurava com a brisa, junto da velha casa pintada de branco e dos muros de pedra e da vinha beirã que se estendia à nossa frente, reencontrou aquele lugar como um sítio de serenidade e paz, porque imutável. Ele tinha a quem agradecer e o meu tio conhecia agora o fruto da sua ajuda. A serenidade que ambos sentiam pertencia-lhes pela escolha que fizeram: um o que devia, o outro o que desejava há muito.

A serenidade existia porque o desafio terminara. Era passado. Tal como sucedeu com os heróis triestinos de Magris que desapareceram e ao contrário do que se passa no drama português que está no nada acabar, na permanente existência num limbo, na eterna imutabilidade sem um fim à vista. Na constante repetição dos mesmos erros que prejudicam as mesmas vítimas que não escolhem. Não é verdade que em Portugal os heróis sejam serenos; conformaram-se, o que é diferente.

Boa Páscoa.