Há alturas em que defendo que devia ser obrigatória uma crise, por ano. Pelo menos. Porque as crises trazem safanões. E eles nos obrigam a medir as distâncias entre o que somos e tudo aquilo que deixámos para trás. E nos interpelam a propósito daquilo que temos das pessoas que contribuem para sermos quem somos, por mais que lhes falte muito para que a nossa relação com elas não tropece em mal-entendidos e outras coisas do género que, tudo junto, nos faz sentir, ao pé de si, sozinhos e acompanhados, ao mesmo tempo. Ou com “tudo no sítio” e com as coisas quase todas “meio desarrumadas”. E fora do lugar. E nos leva a perguntar se a nossa vida tem “a nossa cara”. Ou, pelo contrário, se, por cada dia que passa, ela não nos empurra para uma espécie de saudade que nos faz ir, invariavelmente, ao passado, à procura dos argumentos que nos compensem do amor, da fé nas pessoas ou do orgulho que nos falta no presente.

É verdade que a saudade dói. Mas, ainda assim, há saudades boas! Por mais que a saudade suponha a ausência ou a distância. A ausência de alguém bom ou a distância (grande) de coisas boas que, “no final”, fazem com que a saudade nos magoe. Se funcionasse como devia, sempre que os nossos dias estivessem numa das tais crises que devíamos ter mais amiúde, a saudade seria aquilo que nos faria ir ao reservatório das memórias procurar os argumentos com que a dor se transforma em esperança. O que nos levaria a afirmar, nessas circunstância, que sem a saudade não há esperança. (O futuro da saudade é a esperança. Será mais assim.) Levando-nos a batalhar por encontrar, num futuro próximo, aquilo que teremos perdido. Orientados por aquilo que já tivemos. As boas saudades são uma ponte. Entre o passado e o futuro. E é por isso que, em relação a elas, nós nos aperfeiçoámos a “matar as saudades”. A “acabar” com elas. Sempre que resgatamos, hoje, o que foi nosso e que perdemos.

Mas a maioria de nós vive a saudade como uma preguiça de futuro. Um “Ó tempo, volta para trás”. Que se intromete nos nossos dias e que, conforme os gostos, alguns entendem que – ora com a adolescência ora com os “vintes”, por exemplo – faz com que “os melhores anos da vida” sejam (sempre!) um sítio que deixámos no passado e que não se recupera. Por mais que nos sintamos, hoje, mais bonitos do que, alguma vez, teremos sido; por exemplo. A saudade como preguiça do futuro é uma saudade má. Na verdade, quase mesmo perversa. Porque nos inebria com uma certa aragem de vaidade daquilo que tivemos. Sem que nos ponha a mexer. E sem que nos leve a recuperar aquilo que nos deixou.

Ao contrário dos nossos filhos, que têm (sobretudo) saudades boas, nós somos capazes de ter, talvez, muito mais saudades más. Eles, em cada crise, doem-se. Mas saem delas com esperança. Nós, funcionamos como se nem das crises estivéssemos à altura. Vivendo, aparentemente, sem safanões. Mas (muitas vezes) atulhados em saudades más. O que faz com que as nossas saudades más e as suas saudades boas se emaranhem em muitos nós. Porque, sem nos darmos conta daquilo que lhes pedimos, queremos muito que eles nos levem a desfazer das saudades que resultam de reconhecermos que a nossa vida foi perdendo os argumentos que nos traziam felicidade. Como se o futuro deles fosse a única forma de nos vermos livres das (nossas) saudades. Que teimam em ser más.

Mas esta luta entre saudades boas e saudades más estende-se, de um outro modo, a todos nós. Porque, à medida que crescemos, fomos escutando que a saudade seria um “produto”, tipicamente, português. Como se fosse um património tão imaterial como o fado. Ora, desculpem, a saudade portuguesa de que todos ouvimos falar é, sobretudo, uma saudade má. Uma preguiça de futuro. Enquanto o fado, que há quem a confunda com ela, é uma saudade boa. Porque quando canta a dor ou a saudade, o fado nos mostra que o caminho da cura das coisas depressivas é fazermos da transparência, com que elas se falam, e da forma como se transformam em beleza, o antídoto que nos separa do sofrimento. E nos abre caminho até à esperança.

Chegados aqui, era mesmo bom que vivêssemos crises mais vezes. Transformando a saudade, enquanto preguiça, em esperança. Com mais ou menos safanões. Mas crescendo sem se estar a olhar, quase sempre, para trás.

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