“Espectáculo arrepiante e dantesco: aos uivos das labaredas; aos ruídos matraqueados dos desmoronamentos de telhados e paredes; ao crepitar das madeiras incandescentes; ao rechinar das carnes e gritos aflitivos dos animais domésticos, juntavam-se os clamores zenitantes da dor dos habitantes que, imponentes para dominar o monstro, foram testemunhas passivas e dolorosas da destruição dos seus lares e haveres”
Jornal «A  Regeneração», 1961

A citação remete-nos à tragédia de Vale do Rio, quando um devastador incêndio atingiu três aldeias, riscando uma do mapa (Casalinho), num rasto de morte e destruição. Nessa década de 1960, o fogo ceifou pelo menos 8 vidas e desalojou centenas, só no Pinhal Interior. Em Boticas, em 1962, mais 4. Em 1966, Nova tragédia, em Sintra, onde 25 militares perderam a vida. E nesse mesmo ano, um enorme incêndio em Monchique, além de uma vítima mortal, destrói habitações, currais, animais, culturas, etc.

O flagelo não amainou nos anos seguintes: 1974 e 75 foram anos terríveis de incêndios, a marcar os anos da revolução… Em 75, um incêndio com mais de uma semana, na Serra do Açor, destrói a aldeia de Cepos (sede de freguesia do concelho de Arganil), com a morte de 2 mulheres e dezenas de casas devastadas. As tragédias de Armamar (14) e Águeda (16), em 1985 e 86, respondem por 30 mortes. No Pinhal Interior, Vila do Rei (1986) e Arganil (1987) foram também palco de enormes incêndios.

Prejuízos de centenas de milhões de euros, pelo menos 38 mortes… Não foram assim há tanto tempo os anos infernais de 2003 e 2005. E logo em 2006, na Serra da Estrela, mais um episódio trágico levou a vida a 5 bombeiros chilenos e 1 luso. Cifras negras que continuaram nesta década, com 4 mortes em 2013 no Caramulo, ou com as 3 de 2016, na Madeira, correndo mundo as imagens do fogo a entrar no Funchal…

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E assim, chega a manhã do dia 18 de Junho de 2017: os portugueses ligam a televisão e as notícias dizem que um incêndio começado no dia anterior, como tantos outros, havia feito dezenas de mortos numa estrada…

Eis a mensagem do sr. Presidente da República: “Não era possível fazer mais, há situações que são situações imprevisíveis (…)”

Imprevisível?

Décadas de alertas para os problemas do abandono e do consequente crescimento desenfreado de matos, inúmeros estudos, ensaios, experiências, envolvimento internacional, teses publicadas, ferramentas criadas? Tudo desprezado…

O fogo, como todos, lá se apagou. Seguiram-se as visitas aos locais, as palavras de esperança, a reconstrução, o memorial, a promessa de medidas.

Enfim, nada de novo: também em 1964 o então Presidente da República Américo Tomaz foi inaugurar a reconstruida aldeia de Vale do Rio; em 1970 é o Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, a visitar as áreas ardidas de Arganil, Góis, Lousã e Pampilhosa, tal como em 1973 o secretário de Estado da Agricultura ou em 1992 o ministro da Administração Interna; Turismo, em 1964, novas sombras em 1973, reforço de meios em 1985, “como a fénix, fazer renascer das cinzas o que o fogo destruiu” dizia em 1987 o presidente da Câmara de Arganil e o secretário de Estado do Ambiente… palavras, leva-as o vento!; memoriais vão-se multiplicando; e, claro, profundas mudanças legislativas, que chegaram a várias dezenas de diplomas no rescaldo de 2003 e 2005, e que continuaram, por exemplo em 2013 ou 2016…

“A coisa pior que pode acontecer é que a floresta volte a crescer como estava. Todos hoje sabemos bem que deixar a floresta crescer livremente é criar condições para que ela seja combustível e que não seja aquilo que deve ser — uma fonte de riqueza e de valorização económica” foram as palavras de António Costa, a 28/06/2017 numa reunião com autarcas do Pinhal Interior.

Sr. Primeiro Ministro, o tempo passa, e enquanto nem as bermas de estrada estão limpas, enquanto de um lado vão culpando eucaliptos e do outro terroristas, enquanto anunciam os maiores dispositivos de sempre, ou se vangloriam com resultados de medidas em condições benignas, a vegetação vai crescendo e acumulando combustível, numa salganhada impenetrável de eucaliptos, giestas, pinheiros, tojos, acácias, urzes, carvalhos, misturados, desordenados, abandonados…

O pior que podia acontecer… está mesmo a acontecer.

Passaram três anos. Não, ao contrário do que diz o mapa do ICNF, estas ainda não são zonas perigosas… Mas, o ‘countdown’ está ligado!

Ouvido por este jornal nessa altura, prognosticava o arq. Henrique Pereira Dos Santos: “Vão todos dizer que as medidas estão a ser um grande êxito até ao fogo homérico de 2030”. Não são precisos grandes dotes de adivinhação, basta não ter memória curta. Caramba, são décadas e décadas deste triste fado.

E os leitores, já se esqueceram? Quantas vezes mais aceitarão que lhes digam que era imprevisível?