1 Começo por dizer algo óbvio: o jornalismo está sujeito ao escrutínio como qualquer actividade que atue em nome do interesse público. Sendo o escrutínio uma das principais missões do jornalismo, tal significa uma submissão automática dos jornalistas ao escrutínio da opinião pública, dos visados das suas notícias e, em última análise, ao escrutínio judicial quando os limites da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa não são respeitados.

Não há direitos absolutos num Estado de Direito e o trabalho da comunicação social está sujeito a uma ponderação especial quando colide com outros direitos, como o direito ao bom nome e à privacidade, por exemplo.

O jornalismo também está sujeito ao erro, sendo igualmente certo que a gravidade dos erros é relevante para aferir se os mesmos são involuntários ou se são efetivamente graves para merecerem uma punição.

Por outro lado, e em termos gerais, os jornalistas portugueses destacam-se claramente face aos seus colegas europeus no que diz respeito ao respeito pela vida privada dos cidadãos. Basta ler a imprensa tablóide inglesa, espanhola, italiana, francesa ou até mesmo escandinava e compará-la com o único jornal nacional que assume o seu lado mais popular para perceber facilmente as diferenças que existem.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Isso não significa, contudo, que alguma comunicação social portuguesa não cometa exageros que podem aproximá-lo do jornalismo sensacionalista — no qual em vez de um jornalista, temos um paparazzi com uma câmara e um microfone na mão.

Por exemplo, o que aconteceu com João Galamba após a Operação Influencer é um erro e um exagero claro. Pressionar uma resposta de alguém que não quer falar e que chega a casa com a sua mulher e os seus filhos, tocar à campainha de todos os apartamentos para perceber se Galamba estava em casa e andar atrás do então ex-ministro às 7 da manhã quando este sai de casa para passear o cão — nada disso é jornalismo e nada disso tem algo a ver com escrutínio jornalístico.

Várias pessoas utilizaram a palavra assédio para descrever esse comportamento e eu, que estou particularmente à vontade no que diz respeito a uma visão crítica sobre a figura política de João Galamba, só posso concordar.

2 Dito isto, também é importante censurar quem tenta confundir a árvore com a floresta e quem tenta atirar areia para os olhos dos cidadãos, do alto dos seus pedestais mediáticos, tentando criar a ideia de que o jornalismo português é o maior aliado do populismo (do Chega, pois claro!) e de que o escrutínio jornalístico é um reality show que nada tem a ver com a democracia.

José Pacheco Pereira é alguém que, entre uma elite que vive há largos anos dos textos que publica na imprensa e dos comentários que faz nas televisões, se evidencia nas críticas ao jornalismo. E ainda bem porque há uma tradição antiga na comunicação social ocidental de abrir as páginas e dar tempo de antena a quem quer criticar o jornalismo.

No auge do caso das gémeas (um bom exemplo de jornalismo de investigação) e um mês após a Operação Influencer (um caso judicial que os jornalistas, como eu, são obrigados a noticiar pela sua relevância), Pacheco Pereira explicava no Público e na CNN Portugal que o “clima de radicalismo que se vive em Portugal” também tem a ver com o “jornalismo persecutório que vive da excitação muitas vezes de trivialidades” e do “efeito do exagero” que “aniquila aquilo que devia ser o trabalho fundamental do jornalismo e que dá o nome à coisa, mediar.”

Apesar de defender que deve haver “denúncia e escrutínio”, Pacheco Pereira generaliza que existe em Portugal um “jornalismo persecutório” para dizer que há uma “tendência para o reality show” que ignora “o contexto e o sistema de mediações que todas as escolas de Jornalismo ensinam”.

Infelizmente, e correndo o risco de ser apelidado de corporativista, Pacheco Pereira incorre exatamente no mesmo erro que aponta: promove um efeito de exagero e praticamente acusa o jornalismo de ser a causa da crise da democracia.

Apesar de existirem algumas responsabilidades que não escamoteio, tal acusação é infundada e, sem colocar em causa os méritos intelectuais de Pacheco Pereira, só pode ser explicada com uma certa imagem de grande ombudsman (provedor) que o próprio Pacheco criou para si próprio e que, na sua psique, lhe proporciona emprego garantido como cronista na comunicação social.

Quem é que despede um crítico do jornalismo, mesmo quando já não tem audiência que justifique um investimento financeiro que daria para contratar uma mini-redação?

3 Pacheco Pereira foi um dos principais ideólogos da candidatura de Rui Rio à liderança do PSD. Os dois entendiam, e entendem, que os jornalistas têm de ser postos na ordem. E porquê? Por causa do tal “jornalismo persecutório”. Já regressarei a esta dupla Pacheco/Rio mas antes uma pergunta: mas qual “jornalismo persecutório”?

O jornalismo que revelou as contas da Suíça de Isaltino Morais? O jornalismo que revelou os negócios de Duarte Lima com o BPN e que estiveram na origem da sua condenação por burla qualificada? O jornalismo que deu especial destaque a destapar os horrores da gestão da Portugal Telecom e dos principais bancos nacionais, como o BES, BPP, BPN, BCP, entre outros? O jornalismo que deu origem ao caso Luanda Leaks ou o jornalismo português que colabora com os melhores consórcios internacionais? Ou o jornalismo que revelou os inúmeros casos de José Sócrates como o caso Cova da Beira, o caso da licenciatura ou o autêntico “golpe de Estado judiciário” (a expressão é de Ricardo Sá Fernandes, não é minha) que impediu que fosse investigado no caso Face Oculta?

Entre tantos e tantos outros exemplos de jornalismo de investigação ou de jornalismo judiciário que fizeram com que a opinião pública fosse devidamente informada sobre os seus representantes políticos, sobre a ação e as falhas da Justiça ou sobre instituições públicas e privadas com impacto nas suas vidas.

Será que Pacheco Pereira queria que todos esses casos fossem silenciados pelo “jornalismo persecutório”? Não serei injusto respondendo positivamente. Mas, no mínimo, pode-se dizer que as omissões de Pacheco são uma prova da sua obsessão com os jornalistas portugueses.

4 E deixo mais exemplos de omissões de Pacheco Pereira que consegue a proeza de dizer uma coisa (“não é que não deva haver denúncia e escrutínio”) e o seu contrário. Mas já que defende a existência de escrutínio dos poderes públicos, onde estava Pacheco Pereira quando a LADA — Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, criada em 1993, foi sucessivamente alterada e retalhada para obstaculizar o cumprimento do princípio da administração aberta e dificultar ainda mais o acesso dos jornalistas e dos cidadãos a documentação pública?

Onde estava o sempre atento Pacheco Pereira às matérias de liberdade de imprensa quando a nova LADA aprovada em 2016 impôs sucessivos segredos que anteriormente não existiam na lei?

A partir de 2016, praticamente deixou de ser possível escrutinar a chamada diplomacia económica fomentada — e bem — por sucessivos governos e que leva a um forte envolvimento entre o poder político e empresas privadas. Porque toda essa documentação passou a estar protegida por segredo diplomático.

Basta recordar o caso de Vitor Escária como assessor de José Sócrates para a Venezuela ou do próprio Sócrates para percebermos a importância desse escrutínio e das possíveis promiscuidades e conflitos de interesse que podem advir de tão grande proximidade entre o poder político e económico.

Onde estava Pacheco Pereira quando o segredo comercial das empresas públicas foi reforçado ou quando a LADA passou a permitir que a administração pública recuse o acesso a jornalistas se o mesmo causar danos graves e dificilmente reversíveis a bens ou interesses patrimoniais de terceiros?

Imagine-se a seguinte hipótese: se eu pedir acesso a um processo de um concurso público do qual tenha indícios de que foi viciado, a entidade pública que promoveu o mesmo pode recusar o acesso com o argumento de que posso prejudicar as empresas envolvidas… Não é surreal?

O Banco de Portugal e a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários também passaram a poder recusar o acesso a documentação, caso o mesmo afete a eficácia da fiscalização ou supervisão.

E, finalmente, a cereja no topo do bolo: o Regime Geral de Proteção de Dados influenciou toda a administração pública para restringir ainda mais o acesso a documentação pública, com uma interpretação tão extensiva que até a assinatura de um contrato público é um dado pessoal e deve ser guardado dos malvados dos jornalistas.

É assim que se evita o “jornalismo persecutório”, escondendo cada vez mais informação? É esta a transparência que caracteriza todas as democracias liberais?

5 É extraordinário que em 2023 os jornalistas portugueses tenham claramente menos acesso a informação do que em 1999 — ano em que entrei na profissão — mas o que preocupa José Pacheco Pereira é o “jornalismo persecutório”.

Talvez Pacheco Pereira tenha preocupações semelhantes à do seu amigo Rui Rio — que tem um especial gosto por uma imprensa livre e plural, como o seu trabalho como presidente da Câmara do Porto demonstrou.

Por exemplo, uma das preocupações de Rui Rio como líder do PSD em 2018 era reforçar os direitos de personalidade para reforçar o direito ao bom nome e reduzir a importância da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa.

Numa palavra, Rio queria facilitar a condenação de jornalistas e das empresas de comunicação social nos tribunais cíveis e criminais para mais facilmente impor uma ‘lei da rolha’ nos media. Tudo à revelia da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que tem sido seguida pelos tribunais portugueses.

É o modelo húngaro de Orban e polaco do Lei e Ordem que Rui Rio tanto adora. E Pacheco Pereira também gosta?

6 Finalmente, temos ainda aquilo que Rui Rio chegou a apelidar de “julgamentos da tabacaria”. Ou seja, as notícias que são dadas sobre factos em segredo de justiça e que levam a opinião pública a determinados juízos de valor sobre os arguidos em processos penais.

Dando de barato que Rio também promoveu esses “julgamentos de tabacaria” que denunciou — ver aqui sobre José Sócrates —, vamos ser práticos. A partir do momento em que as autoridades judiciárias lançam operações de buscas a figuras políticas ou empresariais com relevância e as investigações se tornam públicas, como é que se impede que a comunicação social noticie factos com interesse público?

Vamos dar um exemplo concreto. José Sócrates foi detido no Aeroporto da Portela no dia 21 de novembro de 2014. A detenção foi confirmada pela Procuradoria-Geral da República. Como seria possível impedir que os media procurassem informação sobre o caso que envolvia um ex-primeiro-ministro?

Quando ouvimos alguém a criticar alegadas violações do segredo de justiça, essa é a pergunta que deve ser sempre colocada porque remete para o âmago da democracia liberal.

Se o jornalismo implica, como eu interpreto, o escrutínio dos poderes públicos, dos titulares de cargos públicos e políticos. Se tal escrutínio é, ao fim e ao cabo (mas não só), o escrutínio dos três poderes do Estado moderno, inscritos na nossa Constituição: o Executivo, o Legislativo e o Judicial.

Se o equilíbrio entre estes poderes constitucionais é o ponto crucial nos sistemas democráticos e se, ao exercerem o escrutínio desses três poderes, os jornalistas estão a contribuir para um reforço desse mesmo equilíbrio.

Se fazemos esse escrutínio em nome dos cidadãos, como representantes da Opinião Pública, para informar os cidadãos sobre a actividade dos poderes públicos e para que os cidadãos formem a sua opinião sobre se os titulares de cargos públicos e políticos estão, de facto, a conduzir os negócios públicos de acordo com o interesse da comunidade.

Se a democracia liberal exige noções fundamentais, como a integridade, a transparência ou a boa gestão dos dinheiros públicos, aos seus representantes.

E se toda essa actividade está enquadrada em leis estruturantes de qualquer Estado de Direito Democrático, como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e, claro, o acesso às fontes…

Como é que vamos impedir os alegados “julgamentos de tabacaria” na expressão popularucha de Rui Rio?

7 A não ser que se queiram impor regras que farão desaparecer a democracia liberal, talvez o problema esteja precisamente aí: se calhar não há “julgamentos de tabacaria”. O que há é algo normal em qualquer democracia ocidental madura.

Ou Pacheco Pereira quer tomar os portugueses por parvos e convencê-los de que a imprensa espanhola, italiana, francesa, inglesa, alemã, etc., não dão notícias sobre processos judiciais que envolvem personalidades públicas?

Sem, uma vez mais, escamotear situações censuráveis — como notícias sobre buscas judiciais quando as mesmas ou ainda não começaram ou estão prestes a começar —, o problema reside noutra questão: a confusão que se instalou entre o que significa a presunção de inocência no nosso processo penal e o escrutínio a que determinada figura política está sujeita por ter sido constituída arguida.

O conceito jurídico de presunção de inocência tem a ver com o direito a julgamento justo e imparcial. É um direito que deve ser assegurado durante a tramitação do processo e obriga os magistrados judiciais a serem objetivos e factuais nas suas decisões.

Isso nada tem a ver com o escrutínio público de, por exemplo, um ministro ou o um secretário de Estado que venha a ser constituído arguido. Como o próprio António Costa bem demonstrou quando se demitiu devido  à Operação Influencer, a existência de uma suspeita não é compatível com o desempenho de um cargo público. E se se aplica esse princípio ao primeiro-ministro, aplica-se a todos os representantes do poder político. É tão simples como isto.

À medida que nos aproximamos dos 50 anos da democracia, estamos a viver vários paradoxos e um deles é simples de explicar: a nossa democracia é cada vez menos transparente, quando o contrário é que seria o normal. Haverá algo mais perverso do que isso?

Desejo um Bom Ano Novo com saúde e sucesso a todos os leitores