“Alguém que, por mera retaliação, mantém um imóvel fora de mercado, numa altura em que há uma crise de habitação, tem de ser obrigado a pôr o seu imóvel a arrendar. Está a ir contra o interesse público.”

Mariana Mortágua, Eco, 1 de fevereiro de 2023

1 Em 2008, o Bloco de Esquerda (BE) organizou um fórum de verão dedicado, entre outras actividades, a debates. Um deles intitulava-se “A Propriedade é um Roubo?”. No Esquerda.net, o debate era enquadrado com este texto que discorria sobre as teses do revolucionário anarquista Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) e de John Locke sobre o conceito de propriedade.

Se o anarquista era apresentado como alguém dividido sobre as vantagens do direito à propriedade, já a famosa ideia de Locke — de que a propriedade era uma extensão do corpo, como se o ser dono de um bem se assemelhasse à ‘propriedade’ natural que cada um de nós tem do seu corpo — é contestada com as ideias marxistas habituais sobre a detenção dos meios de produção: “(…) se, por extensão, os frutos do trabalho legitimamente pertencem a quem os produziu, como justificar que parte dos frutos do trabalho de quem lavra a terra ou trabalha na oficina que um outro diz ser sua, passem a pertencer a quem se diz proprietário e não a quem os produziu?”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Apesar de todos os habituais cuidados do Bloco com as meias palavras e o marketing para esconder a sua verdadeira natureza, a ideia de que a propriedade é um roubo estava claramente subjacente enquanto statement político.

2 Vem isto propósito da já famosa entrevista Mariana Mortágua ao jornal Eco sobre a política de habitação que o BE defende para o país. Mais do que a ideia da propriedade é um roubo, o que a deputada do Bloco proclamou foi uma espécie de nacionalização do parque habitacional em que os direitos de propriedade dos privados deixam de existir.

Tudo para atingir o alfa e ómega da política do Bloco: controlar e baixar os preços da habitação.

E quais são as ideias de Mariana Mortágua? São quatro ideias-chave:

  • controle dos preços na compra e venda e no arrendamento por parte do Estado, abolindo o funcionamento das regras do mercado e alterando a duração dos contratos de arrendamento;
  • restrição clara dos direitos de propriedade, limitando fortemente o uso e usufruto do bem;
  • proibição de venda de imóveis a investimento estrangeiro — aparentemente, apenas a pessoas coletivas;
  • E, finalmente, a proibição de mais alojamento local e redução do já existente — o que só pode significar a abolição de licenças já autorizadas.

Resumindo e concluindo: é claro que a grande causa do problema da habitação em Portugal reside nos proprietários nacionais mas também no capital internacional. Os porcos de cartola — como os anarquisas e os comunistas retratatavam os capitalistas no início do séc. XX — são sempre os responsáveis pelos problemas do mundo.

Só posso elogiar toda a transparência demonstrada por Mariana Mortágua por mostrar a verdadeira agenda e pensamento marxista e neo comunista do Bloco.

3 Para a equação extremista e demagógica de Mariana Mortágua não contam o contexto setor financeiro (como podia?) nem os dados do lado da oferta. A sentença de Mortágua é ideológica e pré-formatada. Se a realidade não confirma o seu diagnóstico, tal é irrelevante para qualquer bloquista. O que interessa é aplicar a cartilha anti-capitalista, como se essa alguma vez tenha gerado progresso e riqueza para os povos que sofreram com o comunismo nas suas mais variadas formas.

E que questões são essas? Eis vários exemplos, com base em dados divulgados por Carlos Guimarães Pinto e Gonçalo Levy Cordeiro num ensaio sobre este tema publicado no Eco:

  • o facto de os juros historicamente baixos terem-se mantido durante mais de 15/20 anos — um período muito longo — promoveu um crescimento exponencial de procura;
  • refira-se também que o mercado de arrendamento em Portugal está historicamente estrangulado devido ao congelamento das rendas decidido por Salazar e continuado pela democracia. Logo, historicamente os portugueses preferem comprar casas a alugá-las. Pois os preços do arrendamento sempre suplantaram os preços de uma prestação mensal de um empréstimo financeiro. Muito mais num contexto de juros historicamente baixos. Portugal tem 78,3% de proprietários e apenas 21,7% de inquilinos. A Alemanha, por exemplo, tem 50,5% de inquilinos, como se pode ler neste relatório de 2022 do Eurostat.
  • E a oferta baixou muito significativamente: houve uma redução de 85% de fogos concluídos desde 2000 até 2020. Isto quando o número de transações disparou entre 2012 e 2021.

Acresce a tudo isto que os dados nacionais do alojamento local são irrelevantes (os grandes problemas de gentrificação localizam-se em algumas freguesias de Lisboa e o Porto) e o número de compradores estrangeiros é residual quando comparados com os nacionais. Em cerca de 45,9 mil transações no último trimestre de 2021, apenas 3,3% foram realizadas por não nacionais.

Não ignoro a percepção de que a compra de habitação por não residentes pode ter tido também a sua importância na subida de preços. Mas os dados estatísticos não apontam essa questão como sendo a principal razão.

4 Acresce igualmente que Mariana Mortágua quer, entre outras questões, acabar com a lei que permitiu a renovação urbana gigantesca de Lisboa e Porto nos últimos anos: a lei dos fundos imobiliários.

Ao apostar em boas condições fiscais para o investimento em renovação urbana, o Estado deu condições para que os privados investissem fortemente nessa área e transformassem radicalmente os centros urbanos de Lisboa e do Porto.

Resultado: milhares de fogos nos centros de Lisboa e do Porto, que estavam devolutos, podres ou com problemas de manutenção, foram reabilitados. Basta recordar-nos como era no final dos 90 do século passado a baixa do Porto e uma parte importante do centro de Lisboa para percebermos a revolução (uma palavra de que Mortágua gosta) que aconteceu.

O que preferia o Bloco? Que os centros urbanos de Lisboa e Porto estivessem ao abandono, degradados e com problemas sérios de segurança e, de preferência, com os militantes bloquistas a viverem e a pagarem 50 euros por mês para viverem em casas com 200 m2.

Justiça social no entendimento do Bloco é o congelamento das rendas por valores ridículos para que os donos dos prédios não tenham condições para investir um euro na manutenção. Mas mesmo assim sejam obrigados por lei a suportar tal custo. A irracionalidade económica sempre foi a base do pensamento da extrema-esquerda.

5 Toda a narrativa de Mariana Mortágua tem um objetivo final claro: afirmar que o problema da habitação resulta de “um problema de distribuição de rendimentos e riqueza, em que um país trabalha para sustentar um setor que é especulativo e que está a apropriar-se de uma parte dos rendimentos da sociedade.”

Ou seja, a deputada do BE não quer a “sociedade a trabalhar para os proprietários“. É todo um tratado esta frase.

Se conjugarmos estas declarações de Mariana Mortágua com as melhores entrevistas que foram feitas a Catarina Martins pelo Observador, chegamos facilmente à conclusão de que o Bloco quer ter uma espécie de nacionalização do parque habitacional.

Como a coordenadora do Bloco disse em 2019 ao Observador, o BE é um “partido socialista” que “quer uma economia absolutamente diferente em que não haja uma minoria detentora dos meios de produção e que, portanto, também se decida como é que a riqueza é distribuída”, sempre “em benefício de uma pequeníssima elite e com prejuízos da enorme maioria.”

Em sua substituição, o Bloco quer o Estado mandar. Porquê? Porque “somos anti-sistema quando tentamos alterar – e queremos mesmo alterar – o sistema económico tal como ele está. Ou o sistema patriarcal. Nós somos um partido socialista, feminista e ecologista. E isso é bastante anti-sistema”, disse noutra entrevista.

6 Apesar de tudo, Mariana Mortágua até é magnânima. Ou seja, ao mesmo tempo que quer reduzir o número de estabelecimentos de alojamento local, restringindo o uso à habitação, a bloquista até admite (vejam lá!) que o proprietário até “saia uns meses no verão e que queira alugar a sua casa, não há problema nenhum com isso”, enfatiza a deputada.

Uma pergunta simples: então se vai alugar, isso não é alojamento local ou turístico que a deputada quer extinguir? Não é isso que o Bloco quer impedir? Ou preferirá que o proprietário alugue de forma ilegal, não declarando a receita ao Estado?

Está claro que, para os bloquistas, quem tem de resolver e financiar a habitação são os proprietários — e não o Estado.

O problema é que a cabeça ideológica de Mariana Mortágua não percebe que as suas ideias vão provocar precisamente aquilo que ela não quer: centros urbanos desertificados, abandonados, prédios sem manutenção.

7 Todas estas ideias de Mariana Mortágua e de Catarina Martins demonstram bem como os direitos de propriedade são uma mera nota de rodapé para o Bloco de Esquerda quando estão em causa os interesses que o partido apelida de públicos.

Faz-me lembrar precisamente a ideia simples de qualquer regime comunista — seja qual for a variedade e o ismo (estalinista, trotskista, maoísta, etc.) que escolhermos.

Em qualquer regime comunista, o “eu” não existe. Existe o “nós”. Ou seja, as aspirações individuais (para a qual o direito à propriedade é um instrumento fundamental) são destruídas em nome do interesse do Estado, sendo que este é definido pelo coletivo do partido.

O que Mariana Mortágua quer é isso mesmo: a destruição do “eu” para o “nós” prevalecer.

É por tudo isto que já é tempo de olharmos com atenção para o Bloco, como olhamos para o Chega. Os extremos equivalem-se. Sempre.

Texto alterado às 9h56m para corrigir gralhas e acrescentar informação sobre o relatório “Housing in Europe 2022” do Eurostat