Uma família farta da pandemia, dia 119
Aproxima-se o aniversário da mais velha e, em tempos de pandemia, surge a inevitável conversa que tantos pais já tiveram com os filhos nos últimos meses: “este ano vai ser diferente”. Não dá para fazer a festa do costume, não dá para juntar as pessoas do costume, não dá para ter o número de convidados do costume. Meses excepcionais requerem festas excepcionais.
A Carolina sabe que terá muito poucas amigas na festa, sabe que não poderão estar muito próximas, sabe que devem evitar trocas de brinquedos, sabe que deve reduzir os abraços ao mínimo. Com 7 anos, a caminho dos 8, ela sabe tudo isso. E, na verdade, sabe também que até tem sorte por conseguir ter festa – o que mais vimos nos últimos meses foram crianças privadas de celebrações com amigos em nome da pandemia.
As crianças têm hoje muito mais consciência do que podem e não podem fazer. Dos comportamentos seguros e dos que devem evitar. E os adultos também. Leram muito, trocaram imensas ideias, informaram-se, consumiram horas e horas de noticiários, milhões de caracteres de texto nos jornais e revistas, papel e online. Sabemos hoje todos muito mais. Mas há ainda tanto por saber quanto ao que podemos fazer e como podemos proteger as crianças da melhor forma nas férias.
O meu filho deve usar máscara? A partir de que idade? Pode abraçar os avós? E pode ficar com os avós ou ir para o ATL porque eu já não aguento e ele também não? Pode passar a noite em casa dos primos? Podemos viajar? Podemos alugar uma casa, ficar num hotel, comer num restaurante? E o meu adolescente, como o convenço a não ir a festas, a afastar-se de ajuntamentos, a não partilhar bebidas, cigarros ou outras coisas, a manter distância de segurança dos amigos de quem ele sente tanta falta? Ou o outro adolescente: como o convenço a sair do quarto, a não ficar ainda mais fechado, a largar o telemóvel, o computador e a consola? Como posso estar atento à ansiedade e depressão que eles possam estar a sentir? Quando é que tenho de telefonar para o pediatra ou marcar uma consulta com um pedopsiquiatra?
Mas os pediatras não têm todas as respostas. Não conseguem esclarecer todas as dúvidas. Podem, isso sim, é pensar com os pais, ajudá-los a tomar decisões. “É esse o meu papel”, diz Joana Appleton Figueira. “Até porque todos os dias leio coisas contraditórias sobre a Covid. Um dia há um paperque diz uma coisa, no outro dia sai outro que diz o contrário. A pressão para publicar informação sobre a Covid-19 é tal que as coisas estão a sair com pouco filtro.” A pediatra falava na semana passada num webinar que moderei sobre férias em família em tempos de Covid. O evento, organizado pela Porto Editora, contou também com a presença do pedopsiquiatra Pedro Strecht e do psicólogo Tiago Pereira, e serviu de base para uma conversa onde se falou sobre os medos dos pais (e os remorsos que sentem por terem tanta vontade de “mandar” os filhos para os avós ou colocá-los num ATL), as dúvidas sobre a melhor forma de protegerem os miúdos, as preocupações com a saúde mental de crianças e adolescentes, a preparação emocional e o lento retomar da normalidade possível em desconfinamento, entre outros temas.
A festa de aniversário da Carolina ou as férias que estão agora a decorrer ou a começar para tanta gente são terreno fértil para as dúvidas todas que temos sobre o período que atravessamos. E enquanto conseguirmos ir falando delas, menos mal. O problema (maior) é quando não falamos. Quando metemos para dentro. Quando deixamos que o medo nos paralise e nos impede de tomar decisões. E começa o labirinto: não estamos bem, problematizamos, ficamos ansiosos, dormimos mal, sofremos por antecipação, ficamos impossíveis de aturar para as pessoas com quem estamos – incluindo os filhos –, vivemos numa permanente angustia sobre o que podemos e não podemos fazer. E quem já tinha perturbações de ansiedade, traços fóbicos ou obsessivos de verificação e uma tendência para deprimir decerto que não ficou melhor depois destes meses.
Como acalmamos então estas dúvidas? Como protegemos os filhos nestes meses? Como controlamos a nossa preocupação em tempo de descanso? Como fazemos a cabeça parar de pensar tanto?
Não há fórmulas cem por cento eficazes para alcançar a tranquilidade de que precisamos ou para controlar totalmente a ansiedade que já transportávamos e que agora disparou. Mas há duas coisas que podemos fazer…
Por um lado, podemos tentar aceitar que estes tempos não são de todo normais e que, por isso, o medo, as dúvidas e a imprevisibilidade fazem parte das nossas vidas e temos de os acomodar, para conseguirmos continuar a ser funcionais. Por nós e pelos outros. Cada um percorre o caminho em que se sente mais confortável e no qual encontra as melhores respostas, mas uma boa forma de lidar com isto talvez seja tentar prevenir o que pode acontecer nas férias e, em função disso, preparar um plano A, um plano B e, se for preciso, um plano C para fazer face à imprevisibilidade. “Se não conseguirmos ir para o sítio X, vamos para o sítio Y. E se não pudermos sair de casa e tivermos de ficar no nosso concelho, preparamos já uma série de atividades que podemos fazer.”
Por outro, podemos pedir ajuda se sentirmos que não estamos a conseguir lidar com tudo isto ou se tomarmos consciência que estamos a infernizar a vida de quem está connosco. A Linha SNS 24 (808 24 24 24) faz também aconselhamento psicológico e o reforço de profissionais dessa especialidade veio permitir dar resposta a um número crescente de solicitações.
Não vamos conseguir prever tudo o que pode correr mal nestas meses. E não adianta pensar demais no que pode vir a ser o próximo ano letivo. Mas podemos tentar aceitar que estes tempos são suficientemente bizarros para os compreendermos e anteciparmos na totalidade. E, em função disso, acautelar uma ou outra situação. Talvez isso nos traga um pouco mais de tranquilidade. Estamos todos a precisar dela.
Veja também (Diário de Uma Família em Isolamento):
Dia 1. Sabe o nome do seu vizinho?
Dia 2. Teletrabalho? Vocês não têm filhos pequenos, pois não?
Dia 3. Vai para dentro, olha que te constipas, pai
Dia 4. Jantar de grupo, hoje. Por vídeo? Cada um na sua casa.
Dia 5. #vaificartudobem, mas antes disso estamos a ficar mal
Dia 6. Domingos que parecem outro dia qualquer, sempre iguais
Dia 7. Uma quarentena para ler as mensagens todas no WhatsApp
Dia 8. “Quando é que isto acaba?” Não sei, filha
Dia 9. E os professores dos nossos filhos, como estão a lidar com isto?
Dia 10. Já chegou. Um dos nossos está infetado
Dia 11. Rotinas 0 – 1 Sanidade mental. Que se lixem as rotinas
Dia 12. Agenda: às nove no Instagram ou às dez no Skype?
Dia 13. Como explicar o que aconteceu na Ponte 25 de Abril?
Dia 14. Os vossos pais também não param em casa?
Dia 17. “Sim, vai mesmo ter que ir às urgências”
Dia 18. Pão, vinho e Bruno Nogueira. O que mudou em três semanas
Dia 19. O medo lá fora – a minha filha não quer sair de casa
Dia 21. “E então, o que vamos fazer hoje?” Fartos de pensar nisto todos os dias?
Dia 22. “E se te vestisses de professora?”
Dia 23. Não vamos à terra na Páscoa e a minha mãe está triste
Dia 24. “E se eu infetar o meu filho?” Médicos e enfermeiros em isolamento
Dia 26. Não vamos ter ensino à distância
Dia 27. Nunca fizemos tanta companhia aos nossos animais de companhia
Dia 28. O medo lá fora, a segurança cá dentro
Dia 29. Terceiro período. Ou damos em doidos ou respiramos de alívio
Dia 41. Já não estranhamos tudo. Apenas este 25 de Abril
Dia 48. Vamos poder sair de casa. E quem tem medo de o fazer?
Dia 55. Filhos em casa, teletrabalho, saúde mental e pouco descanso
Dia 62. As pequenas vitórias que nos passam ao lado
Dia 69. Como combater a fadiga do Zoom e dos filhos? Com vinho
Dia 76. A minha filha não regressa à escola na segunda-feira
Dia 83. Faltam três semanas. O que vão fazer aos filhos nas férias escolares?
Dia 90. Um penso rápido cor de pele? Da pele de quem?
Dia 112. Voltar à Beira no Verão. E manter a sanidade mental