Cerca de duas semanas após uma grávida ter perdido o seu bebé por falta de obstetras no hospital das Caldas da Rainha, despertando um debate público acerca das condições actuais do SNS, vale a pena fazer um ponto de situação quanto às posições do Presidente da República. Agarre-se bem, caro leitor, que a viagem será feita aos solavancos.

No dia 11 de Junho, Marcelo Rebelo de Sousa desdramatizou o sucedido. Nas suas palavras, “houve uma situação crítica neste fim de semana longo em alguns serviços de obstetrícia”. Tradução: para o Presidente da República, esta era uma situação isolada, “um ponto crítico específico”. Por coincidência, estas declarações sucederam no dia seguinte ao Dia de Portugal, durante o qual o Marcelo se dedicou a elogiar o povo português, optando por discursos inócuos, redigidos para serem esquecidos — com tanto talento, aliás, que produziu o efeito inverso: o discurso acabará por ficar na memória colectiva como exemplo de absoluta irrelevância.

No dia 15 de Junho, o primeiro-ministro António Costa admitiu que “para além dos problemas de contingência, há problemas estruturais que têm de ter resposta”. Não terá sido coincidência o que aconteceu depois: o Presidente da República reviu as suas declarações e adoptou as do primeiro-ministro. A partir de agora, também Marcelo identifica “problemas estruturais” no SNS. E, para os próximos meses, pede “previsão, preparação e prevenção” — como se ninguém se tivesse lembrado disso antes.

No dia 20 de Junho, o Presidente da República foi mais longe e esclareceu que persiste um “problema de fundo que é estrutural” na Saúde. Um problema “largamente antigo”, do qual Marcelo fez questão de ilibar o actual governo: a responsabilidade não é sequer de um governo, nem de dois ou três ou quatro governos. Enfim, na sua tentativa de socorrer o primeiro-ministro, Marcelo terá esquecido o detalhe de que os últimos três governos foram liderados por António Costa.

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No mesmo dia, após inúmeros pedidos de demissão da ministra da Saúde, Marta Temido, e já depois de António Costa ter descartado essa possibilidade, Marcelo voltou a apoiar o governo e defendeu explicitamente a ministra: “o fundamental são as políticas, não propriamente o A, B, C ou o D — eu acho que esta perspetiva de fundo é que é essencial para a sociedade portuguesa”. Concordará Marcelo com as políticas de Marta Temido para a Saúde? Essa parte não esclareceu. Mas lembrou que o governo não está em funções sequer há três meses, o que é formalmente verdade e, simultaneamente, um argumento muito criativo — António Costa é primeiro-ministro há quase 7 anos e Marta Temido é ministra da Saúde desde 2018.

Qual é o ponto? É que os ziguezagues discursivos de Marcelo reflectem coerência na defesa dos interesses e das versões do governo, aqui num momento de elevada pressão mediática e política. Afinal, em todas as suas numerosas intervenções, o Presidente da República serve de amplificador dos argumentos e narrativas do governo — mesmo que para tal se tenha de corrigir ou contradizer.

Não admira, por isso, que se diga que Marcelo é o advogado do governo e de Marta Temido. Não admira que haja quem, como o Paulo Ferreira, o qualifique com graça como o verdadeiro spin doctor do governo — usurpando as funções de João Cepeda, contratado para director de comunicação do governo. Não admira que a parceria Marcelo-Costa reemerja, agora sobre o SNS, pois já a vimos dezenas de vezes em palco — por exemplo, na dissolução do parlamento em 2021, feita por Marcelo nos termos ideais para o PS crescer e, como aconteceu, alcançar uma maioria absoluta. Enfim, talvez nada disto admire.

Ora, a mim, desculpem-me o desabafo, continua a admirar-me uma coisa: que o Presidente da República tenha escolhido para si este papel — o de ser cúmplice institucional de um primeiro-ministro que, após anos de geringonça e imobilismo anti-reformista, está a arrastar um país com ele. As coisas são o que são. E, a Marcelo Rebelo de Sousa acontecerá o que acontece aos que lideram para gerir o imediato, em vez de para construir o futuro: a história julgá-lo-á.