Em Portugal, há duas classes profissionais cujos praticantes são genericamente designados por “eles”: os políticos e os meteorologistas. Ambos lidam com matérias que afectam as nossas vidas, os primeiros através das suas acções, os segundos das suas previsões. É verdade que os meteorologistas têm uma fama duvidosa e largamente injusta de não acertarem no que predizem, além de se terem visto ultrapassados em dignidade  pela nossa querida Greta,  o popular monstrinho sueco que foi recentemente convidado pelo Bloco para vir brincar na Assembleia da República com os meninos deputados e dizer-lhes o que eles devem pensar e como devem falar, aprendizagem a que estão habituados, embora normalmente a cargo dos mais crescidos. Mas o “eles” aplicado aos políticos comporta por definição doses de desprezo incomparavelmente mais elevadas do que o “eles” dos meteorologistas. “Eles” querem é tratar da sua vida à nossa custa, “eles” são uns incompetentes que não sabem fazer nada excepto arranjar esquemas trapaceiros para si e para a família, “eles” pelam-se por mordomias, e assim por diante. Além, é claro, de se deliciarem com a actual versão untuosa, deslavada, escuteira e apocalíptica da saudosa Pipi das Meias Altas.

Toda esta história dos professores tenderá sem dúvida a confortar a opinião pública na pouco gloriosa visão que tem do mundo político. Não confundo Rui Rio com António Costa. Com todos os seus defeitos, mais ou menos patentes desde que se tornou chefe de PSD, Rio é intelectualmente muito mais honesto do que Costa. Apesar de tudo, Costa ameaçou demitir-se por causa da “irresponsabilidade” do CDS e do PSD em votarem com o Bloco e o PC, admitindo explicitamente que a irresponsabilidade destes últimos era um dado adquirido e por todos sabido, enquanto a da direita era surpreendente, o que não deixa de ser revelador do que no íntimo pensa dos seus parceiros da geringonça, algo que não agradará ao PC, mas que Catarina Martins aceita sem pestanejar, como aceita tudo o que lhe puserem à frente, desde que possa, graças à geringonça, aparecer todos os dias na televisão exibindo a meiga virtude das suas aguerridas convicções. Mas Rio, como é óbvio, por mais coerente que ele próprio seja com o que disse no passado, não sai bem desta história, já que o que os seus deputados fizeram parece ter sido algo de completamente diverso, e isso só pode dizer muito sobre a forma como ele dirige o partido.

O que resultará, em votos, desta história dos professores? Sobre isso fizeram-se inúmeros comentários de espúria inteligência analítica, face aos quais o cidadão inerme faria bem em seguir o conselho de João Marques Almeida na semana passada no Observador: “Não acreditem em alguém que vos diga quem vai sair vencedor desta crise ou que antecipe o seu impacto nas eleições legislativas”. De facto, os “cientistas políticos” não possuem o talento adivinhatório dos comentadores futebolísticos, e mesmo esses falham muitas vezes redondamente. Lembram-se dos animados tempos do fim de Bruno Carvalho no Sporting? Não havia praticante do meta-futebol que não jurasse a pés juntos que o Sporting demoraria décadas para sair da desgraça dos últimos lugares do campeonato. Ora aí está ele no seu costumeiro terceiro posto, a esfregar as mãos ao som do não menos costumeiro “Para o ano é que é!”. E se os homens do futebol, apesar dos sofisticados instrumentos matemáticos do quatro-quatro-dois e do quatro-três-três, sucumbem assim ao erro, o que não acontecerá aos membros da Igreja Universal da Politologia?

Uma coisa, no entanto, me chamou a atenção neste recente episódio da nossa democracia. Foi o modo veemente como vários espíritos fizeram notar que as concessões às reivindicações dos professores representariam uma tremenda injustiça para com os trabalhadores do privado, que durante a crise sofreram significativas baixas de salário ou voaram mesmo para o desemprego em massa. E não estou a falar de pessoas que sempre lembraram essa diferença de tratamento entre o privado e o público, como Helena Matos ou José Manuel Fernandes. Estou a falar de um rol de criaturas às quais nenhuma palavra nesta matéria havia jamais sido ouvida e que agora, em defesa de Costa, descobriram a falta de solidariedade para com o todo da sociedade – a “dualidade de critérios”, para voltar ao futebol – que a satisfação dos desejos dos professores significaria. Esta bem-vinda lucidez vai, é claro, passar muito depressa, mas de certa maneira conforta saber que alguns elementos de racionalidade podem, mesmo que por razões puramente tácticas, entrar dentro de espíritos que lhes são tradicionalmente avessos.

“Eles” lá sabem o que fazem e alguma razão desconhecida haverá para se julgarem colectivamente a última e decisiva barreira contra o famigerado “populismo”. Mas, mesmo em tristes situações como esta, convém manter alguma capacidade de distinguir e de traçar divisões. E a principal divisão, já que é ela que condiciona todas as outras, é entre aqueles que declararam o “virar da página da austeridade”, abrindo assim o campo a todas as reivindicações possíveis e imaginárias, e aqueles, mais sóbrios, prudentes e verídicos, que nos avisaram que muitos dos sacrifícios por que passamos estão aí para ficar durante muito tempo. Quem se encontra em cada lado desta essencial linha divisória? Não sabem?

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