“Com vinagre não se apanham moscas”
(Provérbio popular português)

Todos os anos a mesma coisa: o calor aperta e os incêndios aquecem o debate público. E todos os anos os nossos governantes moveram mundos e fundos, fizeram isto e aquilo, reforçaram os dispositivos, estavam preparados. Isto é, está sempre tudo a funcionar às mil maravilhas, comprámos muito vinagre, não haverá mosca, dizem-nos… Dias depois, a realidade desmente-os, pondo a nu um enxame de moscas, um conjunto de fragilidades.

Quando essa altura chega e os eleitores se apercebem do logro, só há uma solução: mentir.

Este capítulo que agora vivemos, não é diferente. Lá ouvimos o Presidente dizer que “dentro do que dispomos está tudo a ser feito”, e que comparando com o o ano terrível de 2017, “há hoje uma sofisticação de meios que não havia naquela ocasião”. Ou seja, a conversa do costume. Dias depois qualquer um percebe que não passa de conversa da treta.

E perante o fracasso o nosso Primeiro-Ministro, desculpa-se com a velha mentira do fogo posto:

“As pessoas que não pensem que é pela existência de meios aéreos que não há incêndios. Só não há incêndios se a mãozinha humana não provocar o incêndio”; “[Os incêndios] não têm geração espontânea, têm sempre humana, criminosa ou de pessoas que desprevenidamente em dia de calor como este criam uma faísca, que vão fazer um churrasco, que fumam na floresta, que se põem a andar de carro ou de mota e sai aquela faiscazinha.”; “É preciso repetir e termos consciência disso: não há incêndio de geração espontânea, todo o incêndio nasce da mão do ser humano, ou deliberadamente ou sem intenção. Mas a verdade é que é a mão humana que provoca os incêndios.”

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Que alguns dos incêndios têm origem no crime de fogo posto, não há qualquer dúvida. Mas a generalização dessa origem ao ponto de a tornar como principal causa dos fogos que sofremos, não é, de todo, compatível quer com os dados do Instituto de Conservação da Natureza, quer com os dados das polícias, incluindo o perfil traçado para estes criminosos. O Observador fez mesmo uma verificação de factos, uma de várias que ano após ano concluem pelo mesmo: é mentira.

Não é por ser tantas vezes repetida que uma mentira passa a verdade, mas é natural que de tantas vezes a ouvir, seja difícil de compreender por muita gente coisas bem simples.

Reparem: se deixarmos a torneira do gás aberta – é uma boa metáfora para o que é a carga combustível das nossas paisagens – o provável é que a casa estoire! Pouco interessa se foi a criança que acendeu o interruptor, se foi a avó que acendeu uma vela, se a mãe foi fazer comida, se o tio foi fumar, sequer desligar o quadro elétrico para não haver um curto circuito, porque até um objeto a cair no chão pode fazer uma faísca… Com o gás aberto, “se não for do cú é das calças”: vai rebentar…

O leitor pode fazer um exercício simples: o ICN tem disponíveis registos de ignições para os últimos 40 anos, com local, hora, data, causa, etc. Se o fizer, facilmente se apercebe que há princípios de incêndios todos os dias do ano, seja verão ou seja inverno, seja dia ou seja noite, faça chuva ou faça sol. Com efeito, há potencialmente milhares de ignições diárias: todos os dias há fumadores, bebedeiras ou acidentes, mas também todos os dias passam comboios, passa energia pela rede elétrica, há gente a trabalhar, há lixo espalhado pelos montes, e volta e meia trovoadas… Todos os dias, mas na maioria dos dias, isso não é problema. Como todos os dias, na nossa casa imaginária, há interruptores ligados, fogão ligado, aqui ou ali a lareira acesa, o cigarro aceso, o copo que se parte no meio do chão, a estática dos cobertores… E também isso não é um problema. Passa a ser, não obstante, motivo para catástrofe, se a torneira do gás estiver aberta.

O que devíamos fazer então para proteger a casa? Preocuparmo-nos em fechar a torneira e em abrir uma janela para deixar sair o gás.

Isso foi feito desde 2017 sr. Presidente? Sr. Primeiro-Ministro?

Não, não foi. Não é fácil? Não, não é. Mas é o que precisa ser feito: abrir a janela para sair o gás, isto é, diminuir a carga combustível, seja com fogo controlado, seja deixando arder no inverno, seja com pastores, com resineiros, com caçadores, seja com sapadores, seja até com herbicidas nalguns casos – umas são mais eficazes, outras mais baratas, outras ainda com maior aceitação social, mas soluções há muitas para fazer o óbvio: guerra ao mato contínuo por kms e kms do cimo das serras até às paredes das casas das aldeias. Porque nestas condições o incêndio transforma-se num monstro imparável, que muitas vezes só acaba quando chove ou alcança algo que não arda (como seja uma área ardida anteriormente, ou o mar).

O que Marcelo e Costa nos dizem é que vamos evitar que a casa expluda. E quando, claro, não conseguimos, culpam o tio fumador ou a criança que acendeu a luz. Uma desculpa esfarrapada mas fácil, que retira importância ao que é fundamental: fechar a torneira e abrir a janela.

Aprendemos alguma coisa com Pedrógão? Sim, aprendemos que isto não tem emenda.