Há muitos momentos em que gostava de poder dizer palavrões. Dá-me ideia de que se soltasse uma ou duas asneiras, os sentimentos que me enchem se iriam materializar de uma maneira mais clara e objectiva. Calculo que assim, que mandando umas quantas bojardas verbais, a minha reacção estaria mais de acordo com a intensidade que vai cá dentro. Nessas alturas, calculo que dizer obscenidades faria de mim alguém mais autêntico, eventualmente até bem-aventurado.

Acontece que não digo palavrões. Comecei por não dizer palavrões porque os meus pais me proibiram. Agora que vivemos numa época tão dada ao cultivo de identidades, diria até que uma das primeiras identidades que abracei foi precisamente essa, a de não dizer palavrões. Desde que me lembro de mim falante, não dizia palavrões e nisso foi tornado parte de uma minoria. Cresci na identidade minoritária de não dizer palavrões.

A maioria dos rapazes no Externato “O Cisne” na Amadora dizia palavrões. Creio não ser exagerado dizer que que dizer palavrões era uma espécie de orgulhosa auto-alfabetização. A nossa alfabetização original, aprendendo a falar e depois a ler, tende a ser algo que os outros decidiram que fizéssemos, certo? Ninguém me consultou antes de me orientar a falar e a escrever. Quando dei por mim, já falava e, um pouco depois, estava a aprender a escrever—sinto-me pouco responsável e meritório por isso.

Já o dizer palavrões é uma auto-alfabetização porque a pessoa escolhe acrescentar aquelas palavras específicas, aqueles palavrões, ao facto de já saber falar e ler. Ou seja: no geral, a alfabetização fornece-nos o que é necessário para dizermos praticamente tudo o que quisermos. O palavrão não. O palavrão é um alfabetização voluntária e consciente em cima da alfabetização primeira que não foi escolhida. Logo, decidir dizer palavrões era para os rapazes do Externato “O Cisne” na Amadora um tipo de contribuição personalizada para o preenchimento léxico daquelas vidas infantis.

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Nesse sentido, e primeiro por culpa dos meus pais, vi-me diminuído da arte do enriquecimento verbal e emocional que o palavrão permitia. Eu sentia o mesmo que os rapazes do Externato “O Cisne” na Amadora sentiam, mas eles suplementavam verbal e emocionalmente onde eu não. Eles acrescentavam intensidade às suas experiências através dos palavrões que diziam e eu, integrante daquela identitária minoria alfabeticamente diminuída, decrescia aos seus olhos. Eles somavam, eu subtraía.

A verdade é que, com o tempo, eu próprio acreditei na causa que os meus pais me impuseram de não dizer palavrões. Não nego que uma ou outra vez acabei a prevaricar, pronunciando alguns em surdina, em escrita (o meu tipo preferido de hipocrisia funcional), ou mesmo em alguns pequenos grupos muito seleccionados. Mas não-dizente de palavrões me fui assumindo ao longo da vida, brioso da minha identidade minoritária. Reconheço que aqui e ali esta condição me trouxe algum orgulho e até vaidade. Hoje tento não cultivar superioridade moral em relação aos outros que dizem palavrões, mas admito que já é uma segunda pele que me é confortável. Não digo palavrões porque fui educado e não digo palavrões porque é quem sou.

Não dizer palavrões não tem nada a ver com não sentir a tentação de os dizer. Como confessei no primeiro parágrafo, ainda hoje, com 46 anos, sinto o ímpeto de desse modo me suplantar emocional e verbalmente. Mas depois páro um pouco, acalmo-me e penso: que tremendo exagero teria sido dizer um palavrão. Dizer palavrões coloca-nos na rota errada da sinceridade. Há rotas certas de sinceridade e há rotas erradas de sinceridade.

A rota errada da sinceridade preconizada pelo dizer palavrões não nos leva ao destino mas altera-o. Se passar o caminho todo a dizer palavrões, vou trocar a palavra inicial pelo palavrão intermédio. A palavra inicial, ainda que pareça nos momentos difíceis do caminho como fria ou até estática, mantém-nos na rota que permanece além dos sentimentos adversos que passamos ao trilhá-la. Já o palavrão intermédio, sendo uma manifestação única do que nos enche o coração, tem o poder de criar caminhos alternativos—tornamo-nos nós as vozes-guia, de tão acesos que estamos.

No final, todos os palavrões que fomos dizendo contribuíram para fazer pouco da palavra inicial, aparentemente apagada diante dos nossos arroubos. É curioso porque, quando era miúdo, dizia-se que quem dizia palavrões ia parar ao Inferno. Hoje, depois de umas quantas décadas a evitar dizê-los quando tanta vontade tenho de o fazer, tenho a certeza de que é esse mesmo o caso. Da parte que me toca, ir parar ao Inferno é tão natural quanto a vontade de dizer palavrões. Evitar as duas coisas é um assunto de vida e de morte.