As últimas semanas mostraram o que já se sabia: desde 2015 que a estratégia para a governação é manter o PS no poder de forma a impedir que a direita lá chegue. Os resultados económicos conseguidos em 2015 foram suficientemente promissores para que a esquerda permitisse que se repetissem nos anos seguintes. A narrativa da esquerda seria irremediavelmente posta em causa caso a direita colhesse, entre 2015 e 2019, os frutos da legislatura anterior. Impedir que tal sucedesse, destruir o que fora feito e apropriar-se do que seria sensato deixar ficar, foi a principal razão de ser da geringonça. Os direitos adquiridos, a melhoria das condições de vida, o investimento público, o SNS e a educação foram meras palavras para encher o vazio que presenciámos de então para cá.

É muito importante percebermos o motivo, a razão de ser da geringonça para compreendermos o porquê do seu fim. Por que razão é que PCP e BE colocam agora tantos entraves na aprovação do orçamento do PS? Se tivermos em conta o primeiro parágrafo deste texto facilmente discernimos três razões.

A primeira é a inexistência do risco de a direita regressar ao governo com um programa reformista. No entender de António Costa, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins é muito difícil que o PSD ganhe as próximas eleições legislativas e consiga um acordo de governação com a IL, o Chega e o CDS. Assim sendo, o risco de a direita apresentar um programa de governo consistente é reduzido; pelo menos é muito mais reduzido do que era em 2015. Só este facto vale o risco do bluff, o perigo do chumbo do orçamento, a ameaça da queda do governo, a incerteza de novas eleições.

A segunda razão para que a geringonça já não produza qualquer efeito prático na política portuguesa está na crise económica. PS, PCP e BE não querem governar em tempo de dificuldades. Esses períodos requerem que se crie riqueza e estes partidos não sabem como é que tal se obtém. Pior: são contra as políticas que permitem aos cidadãos criarem riqueza, que deixam a economia crescer e o país desenvolver-se. Dessa forma, quando é preciso que a economia cresça os partidos de esquerda percebem que têm de se afastar. Esta segunda razão choca com a primeira, pois os partidos de esquerda não querem que a direita seja governo. Mas há aqui uma nuance. É que a esquerda não quer que a direita regresse ao governo com um programa claro. Já não se importa que o faça condicionada pelos protestos, pelas ameaças e mentiras constantes. Não se importa que uma direita enfraquecida (e dividida) seja poder durante um curto período de tempo, o suficiente para que falhe e assuma as culpas.

Há um terceiro motivo para que já não exista geringonça. Este não é tão preponderante quanto os dois primeiros, mas facilita a encenação que PS, PCP e BE estão a fazer. Traduz-se na inexistência de um acordo escrito entre estes três partidos que garantisse a duração da legislatura até ao fim. Tal não aconteceu porque Marcelo (ao contrário de Cavaco Silva) não quis ou não conseguiu impor a sua vontade. Esta falta de acordo facilita a vida a todos pois qualquer um pode sair sem dar explicações. O país merecia mais, mas o Presidente da República considerou que não. Foi pena, quanto mais não seja porque seria importante que ficasse registado o que falhou.

Até porque o falhanço destes seis anos foi de tal ordem que não se limita à esfera económica. O próprio sistema de diálogo social ficou gravemente ferido. Um exemplo é a forma como António Costa lida com a Concertação Social. Este ano, o primeiro-ministro teve um lapso com os ‘patrões’; anteriormente meteu-se em questões com os sindicatos, o que é natural quando o governo negoceia com PCP. Já tive oportunidade de escrever sobre este tema: ao negociar com o PCP, o governo PS não precisa de falar com os sindicatos pois o PCP que domina boa parte deles e o PS tem alguma mão nos restantes. O fim da Concertação Social, um pilar social do regime, é interessante  porque, dessa forma, a esquerda acabou por colocar em causa uma das suas bandeiras. O que não é difícil de compreender depois de percebemos que o que levou à existência da famosa geringonça não foi uma visão do país, não foi um programa de governo, mas simplesmente impedir que a direita governasse.

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