Em primeiro lugar, uma palavra de total condenação e de absoluto repúdio do assassinato de Samuel Paty, o professor de História de um colégio de Paris que foi barbaramente decapitado. Infelizmente, não é um caso único: no dia 26 de Julho de 2016, em Saint Etienne du Rouvray, também em França, o Padre Jacques Hamel já tinha sido morto, do mesmo modo, por dois terroristas islâmicos.

O quinto mandamento da lei de Deus proíbe matar. Só num contexto de legítima defesa pode ser lícito causar a morte do injusto agressor, mas em caso nenhum está permitido tirar a vida de um ser humano inocente, mesmo que ainda não tenha nascido, essa seja a sua vontade, ou padeça uma doença terminal.

É também absolutamente inadmissível que um ser humano se considere com direito de se vingar de outro, matando-o. Qualquer cidadão que se sinta ofendido, pode e deve recorrer ao Estado, para que faça a justiça a que tem direito, mas ninguém pode fazer justiça pelas suas próprias mãos, por mais óbvia que seja a culpa. Portanto, não há nenhuma desculpa para o crime de que foi vítima o professor Samuel Paty.

Um crime desta natureza não merece qualquer tipo de compreensão, porque só a sua condenação é legítima. Porém, daí a um suposto “direito” à blasfémia, vai um abismo. Ou talvez não.

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Há quem entenda que a blasfémia é um legítimo exercício da liberdade de pensamento e de expressão. Mas, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, a blasfémia é “um dito considerado ofensivo, ultrajante em relação à divindade ou à religião”, ou um “dito ou comportamento gravemente ofensivo para com uma pessoa ou coisa digna de muito respeito” (vol I, pág. 540). Note-se que se refere, expressamente, o seu carácter “ultrajante em relação à divindade ou à religião” e que, por isso, é “gravemente ofensivo”. Não o diz uma entidade confessional, mas a Academia das Ciências de Lisboa. Ora ninguém tem direito a ser “ultrajante”, ou “gravemente ofensivo”.

Pode então ser legítima uma lei que criminaliza a blasfémia, como a que vigora em alguns países muçulmanos e de que foram vítimas tantos cristãos, como a Asia Bibi? De modo nenhum! Ninguém pode ser obrigado a crer que Maomé é o mensageiro de Alá, ou que Cristo é o Filho de Deus. Que ninguém possa ser obrigado a crer, ou a não crer, não quer dizer que seja legítima a ofensa a quem crê, ou não crê: os não-cristãos têm que respeitar a personalidade histórica de Jesus de Nazaré, como os não-muçulmanos também não podem ofender a memória de Maomé. Todas as pessoas são livres de crer, ou não crer, mas todos têm que se respeitar e respeitar a crença, ou não-crença, dos outros.

Consta que a vítima, no exercício das suas funções como docente de um colégio, tomou a iniciativa de mostrar, na aula, alguns cartoons alusivos a Maomé. Pode haver caricaturas inofensivas, mas não era o caso e, por isso, o professor dispensou os alunos que preferissem não assistir àquela aula, tendo alguns abandonado a sala. Pergunta-se: é razoável que um professor de História, para explicar a censura e a liberdade de expressão, mostre, a adolescentes, imagens que ferem gravemente a sua sensibilidade religiosa?

Se um dito ou caricatura ofensivos para os judeus não pode ser, muito justamente, permitido, por ser antissemita, por que razão uma caricatura de Jesus Cristo e de Maria de Nazaré, também judeus, é aceite como uma legítima e até saudável manifestação de liberdade de expressão?! Se a agressão a um muçulmano é, como não pode deixar de ser, crime, por que razão um insulto a Maomé o não é também? Não é verdade que qualquer injúria a alguém, ou à sua religião, raça, sexo, ideologia ou condição é, na realidade, uma ofensa a toda a humanidade?

Nenhum professor de Matemática considera facultativa a tabuada dos sete, nem nenhum professor de Geografia permite que os alunos faltem à aula sobre o sistema solar e, por isso, não faz sentido que o professor, em tempo lectivo, dispense os estudantes. Os alunos têm o direito a assistir a todas as aulas e, portanto, os docentes têm a obrigação de não recorrerem a linguagem ou imagens ofensivas, como são as expressões ou caricaturas racistas, xenófobas ou blasfemas.

Ante a insólita atitude do docente, uma aluna queixou-se aos pais, que divulgaram, de forma deturpada, o que tinha acontecido. É deplorável que os pais tenham recorrido às redes sociais para relatar o caso, que deveriam ter denunciado apenas às competentes autoridades académicas ou às entidades judiciais, às quais compete defender, em última instância, o direito fundamental à liberdade religiosa.

Na escola, como na sociedade, devem-se discutir, em liberdade, todos os temas. Não se devem punir as livres opiniões de crentes e não-crentes. Não deve haver censura à liberdade de pensamento e de expressão. Daí não decorre, no entanto, nenhum direito à agressão religiosa, mas, pelo contrário, um dever de respeito para com todas as pessoas e pelas suas convicções, salvo se opostas à liberdade dos outros cidadãos. Por esta razão, um professor universitário de Lisboa foi, recentemente, suspenso da docência, por alegadamente fazer afirmações ofensivas para a dignidade feminina.

Sendo a blasfémia uma ofensa, como certamente é, deve receber um tratamento jurídico análogo à injúria e à difamação. Todas as entidades físicas e morais podem, num estado de direito, exigir que a sua dignidade seja respeitada publicamente. Se uma pessoa merece essa consideração, também o crente e a sua religião devem gozar de análoga protecção legal. Quando a dignidade de indivíduos e instituições religiosas é posta em causa, a sua defesa não é uma questão do foro confessional, mas uma exigência ética e jurídica fundamental.

É necessário que os docentes, pela consideração que manifestam por todas as pessoas e pelas suas crenças religiosas, ensinem, mais com o exemplo do que com a palavra, o apreço pela liberdade de pensamento e religiosa. Quem ridiculariza os outros, ou as suas crenças, nomeadamente com cartoons ofensivos, não favorece a paz e compreensão social, nem a liberdade religiosa. Não se ensina a tolerância com caricaturas antirreligiosas, mas com a consideração devida a todos os crentes e a todas as religiões.

Não há nenhuma justificação para um crime hediondo, que também não pode ser instrumentalizado para legitimar a blasfémia, cujo carácter ofensivo é eticamente reprovável e juridicamente condenável. Não se vence a violência religiosa com a violência irreligiosa: estão a mais todas as formas gratuitas de agressão, sem excluir as supostamente artísticas.

Os crentes devem aceitar todas as crenças e crentes, bem como a não-crença dos ateus e agnósticos e a sua legítima expressão, desde que não seja insultuosa. Mas os não-crentes devem também respeitar os que têm fé e as suas crenças, sejam elas quais forem.

O crime, qualquer que seja, não admite legitimação. A blasfémia também não. Só na aceitação de todas as pessoas, das suas crenças ou não-crença, se pode construir uma sociedade livre e solidária.