“Ventura foi parido por Passos, num processo de crescente radicalização do PSD”, escreveu recentemente Daniel Oliveira. A tese não é nova. Há cerca de um ano, quando André Ventura se candidatou à Câmara Municipal de Loures, o colunista do Expresso assinou outro artigo (“A deriva ideológica do PSD: da farsa à tragédia”) em que defendia que a liderança de Passos Coelho dera “espaço para a extrema-direita ganhar poder num partido do sistema”. Pois bem. Agora Passos já não está e Daniel Oliveira continua a culpar o ex-primeiro-ministro por uma alegada ascensão da extrema-direita em Portugal. Do seu ponto de vista, o facto de o PSD não ter retirado o apoio a Ventura após as suas declarações sobre a etnia cigana legitimou movimentos populistas no nosso espaço público. A vontade de André Ventura formar agora o seu partido (“Chega”) e a proximidade de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil ressuscitaram a tese de Daniel Oliveira acerca da “deriva ideológica” do nosso centro-direita.

Eu, que já entrevistei Daniel Oliveira, conhecendo as suas ideias, discordo dessa tese. Usar Passos Coelho como bode expiatório de um fenómeno extremista pode ser politicamente útil para o autor (e para a sua esquerda), mas não deixa de ser uma conclusão simplista para mim (e para a minha direita). Podemos até discutir quão correta foi a manutenção do apoio social-democrata em Loures, mas daí a dá-la como catalisadora de uma onda populista em Portugal vai uma longa distância. Compreende-se a tentação de sujar o estatuto de Passos com as controvérsias de André Ventura, mas um analista político deve ir além das suas conveniências políticas.

Culpar o centro-direita por ímpetos extremistas tem uma consequência clara: desvaloriza-o, valorizando a esquerda de Daniel Oliveira. E é aí que divergimos. Se queremos entender verdadeiramente o pulsar populista em Portugal devemos olhar para antes das autárquicas em Loures do ano passado. Devemos perguntarmo-nos, com honestidade, quem trouxe, afinal, a ideologia, o euroceticismo e a polarização para o nosso debate público. Devemos perguntarmo-nos quem transformou a arena política num campo onde só se permitem discussões entre «bons» e «maus», «heróis» e «vilões», «neoliberais» e «esquerda», quando todos sabem que o período de intervenção foi bem mais complexo do que isso – apesar de nem todos prescindirem dessa narrativa.

Não concordo e não concordei com pacotes imediatistas de austeridade, com o défice democrático das instituições europeias ou com a falta de ambição que, certas vezes, afecta o nosso centro-direita. Mas não podemos analisar uma preocupação com os mesmos preconceitos daqueles que criticamos. Aquilo que Daniel Oliveira critica em Bolsonaro e Ventura – o radicalismo, o ostracizar do outro, os ataques pessoais – é bastante similar ao modo como a esquerda lidou com o anterior governo. Quem não se lembra da bancada do PCP chamar «PIDE reformado» a Paulo Portas? Quem não se lembra do Bloco de Esquerda colar traços de «racismo» a Passos Coelho? Ou do Partido Socialista chumbar todas as propostas do PSD para o último Orçamento do Estado somente por serem do PSD? A receita para o disparate estava toda lá: o argumentário básico, o tribalismo partidário, o excesso ideológico.

Não foi Passos, portanto, que abriu a janela populista em Portugal. Foram aqueles que não tiveram nenhuma arma contra ele que não essa janela.

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