1 Foi esta terça-feira de manhã em Valença do Minho. De um lado um cordão de professores e funcionários da Escola Básica 2/3 da cidade em manifestação de repúdio contra a violência no meio escolar e as agressões a profissionais da educação. Do outro lado da rua um grupo de pais de etnia cigana exibia cartazes contra o racismo. A GNR zelava para que os ânimos não fervessem.

Devo dizer que levei algum tempo até perceber, ao ver os directos nas televisões, que era este o retrato da situação. Já sabia que o pretexto próximo do cordão humano eram agressões ocorridas na quinta-feira da semana passada, já sabia que uma auxiliar de educação negra fora insultada por uma aluna que fora ao ponto de lhe chamar “preta de m…”, mas primeiro só na imprensa regional do Minho (Alto Minho e Diário do Minho) se descrevia o conflito com clareza. Só lá se informava que os contramanifestantes eram de etnia cigana. E só lá se podia ler a defesa dos representantes da comunidade escolar: “esta é uma manifestação contra a violência e não uma manifestação contra a comunidade de etnia cigana”.

Procurei mais um pouco e encontrei a notícia da RTP. Vendo-a percebe-se o que ali se passou. Ouvindo o depoimento da professora também. Quer quando ela diz que “é difícil a integração quando as pessoas não se querem integrar”, quer quando explica que tem medo que pois todas as manhãs, “quando aqui chegamos, nunca sabemos o que nos vai acontecer”.

Repito: tudo isto se passou esta terça-feira em Valença do Minho. Façam as leituras que quiserem, eu neste momento interessa-me uma: a que olha para a omissão dos jornalistas. Para o seu esforço de silêncio sobre o envolvimento da comunidade cigana naquelas agressões e naquelas manifestações.

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2 Porquê este silêncio? Será porque o o Código Deontológico dos Jornalistas estabelece, no seu ponto 9, que o jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da sua etnia? Essa seria uma boa razão, mas não pega. E não pega porque aquele grupo de manifestantes de etnia cigana estava ali a manifestar-se “contra o racismo”. Sendo assim, porque silenciaram os repórteres o protesto anti-racista? Acho que é fácil perceber porquê: o “anti-racismo” não tinha pernas para andar.

Por isso aquela omissão sobre uma parte do que se estava a passar foi, não duvidemos, mais uma manifestação daquilo a que os teóricos da formação da opinião pública chamam uma “espiral de silêncio”. São temas que se tornam tabus mesmo em democracias liberais, assuntos que por serem classificados como contrários ao interesse comum acabam banidos do debate público. Não há censura, há autocensura. É um mecanismo onde os órgãos de informação desempenham um papel central, como o que verificamos em casos como o de Valença: jornais e televisões optam pela abordagem consensualmente aceite pelas elites em vez de reflectirem as preocupações e as ansiedades dos cidadãos comuns. Omitindo-as mesmo se necessário.

3 É precisamente o vazio criado por esta omissão que o Chega ocupa, sem complexos. Ele sabe que as pessoas sabem porque as pessoas vivem realidades que, pura e simplesmente, são silenciadas pela comunicação social. Que não sabe como lidar com elas a não ser com base em chavões.

Valha a verdade que não é a primeira vez que se fala da etnia cigana em campanhas eleitorais, pois é bom recordar os “ciganos do rendimento mínimo” que tão glosados foram por Paulo Portas na campanha de 2002 (a campanha do “Paulinho das feiras”), mas basta olhar para a forma como se distribuiu a votação do partido de André Ventura para perceber que não convém tentar tapar o sol com uma peneira.

Onde teve mais votos o Chega? Nos subúrbios de Lisboa e em alguns concelhos do Alentejo. Ou seja, em zonas de classe média baixa, algumas com forte presença da etnia cigana, muitas que no passado votavam solidamente no PCP. Nada de especialmente novo neste padrão, pois já vimos como a nova direita populista nasceu e cresceu noutros países.

É por isso que o Chega tem todas as condições para não ser um epifenómeno. Até porque sendo programaticamente um partido da direita radical – está e vai ser chamado de extrema-direita, mas tal definição não é bem aceite pelos cientistas políticos, pois o Chega não encaixa na definição de partido subversivo –, apresenta-se perante o eleitorado mais como um partido populista. É muito interessante analisar a natureza programática desta nova direita, e em alguns aspectos surpreendente, mas julgo que aquilo que marcará a evolução do Chega, mais do que os seus aspectos mais doutrinários, será a capacidade de o seu líder para ir agarrando os temas escondidos pela “espiral de silêncio”, fazendo-se porta-voz de quem sente que não tem voz.

Chega. Afinal, que direita é esta?

4 Houve um tempo em que os eleitores tinham uma ideia do quadro ideológico em que se moviam, mas esse tempo é cada vez mais passado. Isso ajuda a explicar que tenhamos hoje nove partidos numa Assembleia da República onde no passado chegou a haver apenas quatro forças políticas (considerando a CDU apenas uma e não as duas em que artificialmente se divide). É provavelmente apenas o começo de um caminho que só não ganhou ainda maiores proporções pela inércia de voto nos dois maiores partidos (e o efeito do voto útil em eleições legislativas). A fragmentação apenas começou e não se veem muitos sinais de quem tenha políticas para a contrariar.

Estes são também tempos confusos, com muita informação, muitas causas e muitas micro-causas, tempos que julgo que foram bem descritos pelo desabafo do filósofo basco Daniel Innerarity numa entrevista que deu este fim-de-semana ao Observador, na qual notava que quando começara a dar aulas na universidade, os alunos que tinha à sua frente era um conjunto de pessoas pouco informadas, enquanto agora tem um conjunto de gente desorientada. Para um académico, o seu trabalho é tentar reduzir a complexidade do mundo a um ponto em que ele seja inteligível, mas para um partido, sobretudo para um partido com as características do Chega – e quem diz o Chega diz outros partidos simétricos que existem na metade esquerda do parlamento português –, o momento de desorientação e de irritação é o momento da oportunidade.

Nestes tempos não faz sentido esconder os problemas como quem esconde o lixo debaixo da carpete – e é isso que fazemos quando fingimos que em Valença do Minho tudo o que se passou foi apenas um desaguisado entre um encarregado de educação e alguns funcionários da escola. Não pode ter sido só isso. Isso não mobiliza um cordão humano como aquele. Isso não é apenas resultado da falta de mais alguns auxiliares para assegurarem o controle das entradas na escola. Ali o problema tem nome, mas esse nome está proibido. Até que alguém quebre o tabu.

5 Um deputado do Chega não chega por isso a ser surpresa. Surpresa será se continuarmos a fingir que não se passa nada em locais como Valença, se continuarmos indiferentes a histórias mal explicadas como a do lítio em Montalegre, se pensarmos que é normal destratar os emigrantes como foram desprezados num processo eleitoral que gerou quase um quarto de votos nulos, surpresa será se tudo continuar a ser olhado de alto e de longe por quem se sente senhor do país e este povo manso continuar a optar pachorrentamente pela abstenção.

Muitos choram lágrimas de crocodilo porque o Chega elegeu um deputado. Em vez disso era mais útil tratarem de perceber o que está mal no país para essa ter sido a escolha de tanta gente humilde. Mais útil e menos arrogante.