Notícias recentes da China dão-nos conta da preocupante evolução tecnológica na vigilância dos cidadãos. Depois da utilização de ratings sociais associados ao reconhecimento facial, eis que nos aparece aquilo que é impensável para nós cidadãos europeus: um chip associado às pessoas que dá informação de toda a vida de um indivíduo — desde transações bancárias, fiscais, dados biométricos, saúde, consumo, etc. –, sendo implantado em todo o cidadão desde o momento do seu nascimento, de forma a que as autoridades consigam aceder a essa informação em qualquer instante. As autoridades chinesas, recorrendo às novas tecnologias de informação, conseguem ultrapassar o pior dos cenários imaginados pelos clássicos da ficção científica.

Felizmente para os chineses, o que foi dito no parágrafo em cima é mentira. Isto não aconteceu na China porque, aparentemente, o governo chinês ainda consegue reprimir alguma da sua fúria controladora. Infelizmente para nós, isto acontece na República Portuguesa, estado originalíssimo que inscreve na sua constituição um rol de mentiras, ao pé das quais a minha lá de cima é uma pequena mentirola pela qual eu peço desculpa às autoridades chinesas. Entra as mentiras da nossa constituição está a proibição de atribuir um número único e a intenção de ser uma república baseada na dignidade humana.

Dei-me conta disto quando, ao tentar matricular a minha filha de 3 anos no colégio, fui impedido pelo facto de me faltar o cartão de cidadão. Não sei se os meus caros compatriotas têm a plena consciência disto, mas para todos os cidadãos com mais de 20 dias de idade, ou seja, a partir do nascimento, é criado um chip, onde se dá um número único a todo e cada um de nós, ao contrário daquilo que estabelece de forma claríssima o artigo 35º da Constituição: “5. É proibida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos”.

Eu bem sei que a Constituição da República Portuguesa é mais uma peça de higiene pessoal que propriamente algo para se levar a sério, mas isto é demasiado óbvio e não entendo como é que as interpretações das vestais autorizadas deram a volta a isto. Se todos os números, e não só, se juntam num chip, não há a menor das dúvidas para quem fez a 4ª classe de que há um número nacional único para os cidadãos portugueses. Imagino que haverá um iliterato qualquer que tenha legislado que “claro que não há um número único, há 3…”, como que a dizer que o número do Cristiano Ronaldo na equipa não é o 7, porque o fato dele é um 52 e o número dos sapatos é o 45. Sim, tem todos esses números, mas o número de jogador é o 7 como o meu número único de cidadão é 194568345 (mentira!). Mas quase que aposto que a desculpa lusitana para dizer que não há um número único, é dizer que há mais do que um número único, o que eleva de forma inquestionável a quantidade de “mares” por nós nunca dantes navegados.

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Mas vamos continuar. O chip com o número único que dá acesso aos outros 3 ou 4 números vai, ao longo da vida, incorporando dados biométricos como impressões digitais e medidas faciais, vai incorporar as despesas médicas, as vacinas, o consumo de medicamentos, as escolas por onde passou, as notas que teve, os comentários feitos pelos professores, as viagens realizadas, os supermercados onde foi, todos os gastos que fez e onde, o dinheiro que recebeu, onde trabalhou, que filhos teve, com quem casou, que médicos consultou. Se duvida, veja lá o que a parte de trás do seu cartão tem. Sim, mais “números únicos”, daqueles proibidos, que servem de chave para aceder a essa informação toda.

É verdade que o chip não é implantado por dentro da pele dos bebés quando nascem, mas é implantado em cima da pele, uma vez que qualquer coisa que façamos com o Estado, ou com algo relacionado com a lei, é lido de alguma forma através do chip. Penso até não ser legal andar na rua sem o chip, pelo que estar por cima da pele ou debaixo é um mero detalhe. Quase de certeza que a tecnologia médica conseguirá resolver este pequeno problema em breve de forma a que o chip seja colocado no instante do nascimento. Assim, quando se conseguir meter sob a pele, muito se poupará no plástico que tantos malefícios traz à fauna marinha, à natureza em geral e à preservação deste planeta que se quer duradouro.

Voltando à Constituição da República, vamos pegar no objetivo, cada vez mais longínquo, de sermos uma república baseada na dignidade da pessoa humana. É verdade que o conceito é, em si mesmo, uma abstração daquelas que o estado português não tem por hábito levar a sério e é isso que me assusta mesmo. Porque aquilo que me assusta nos tempos que correm não é que o Facebook dê dados à campanha do Trump, que a Google saiba a que sites vou ou que a Amazon tenha conhecimento das minhas preferências literárias. Nada disso é sequer importante porque, do ponto de vista matemático, muito daquilo que saiu nos media acerca do assunto são meros disparates e nada do que foi aventado como “o fim da nossa vida privada” é próximo do real. Acredita que alguém consegue descobrir com base naquilo que escreve nas redes sociais em quem vai votar, se você não transmitir isso de forma clara? Claro que não. Acredita que alguém consegue descobrir pelos dados que transmite que é homossexual, se não revelar de alguma maneira que o é? Claro que não. É claro que se um homem andar na rua exibindo comportamentos estereotipados, se vestir calças cor-de-rosa, revirar os pulsos e falar com voz afetada pode, do ponto de vista estatístico, revelar-se homossexual, mesmo que não seja. Como se vê, não preciso do Facebook para isso, o meu preconceito chega perfeitamente. Tal como se andar com um cartaz a dizer “imigrantes rua”, eu consigo, mais uma vez estatisticamente, enquadrá-lo nos votantes de um ou dois partidos. Mas é isto, não preciso de um “algoritmo” fantástico daqueles que “só os americanos” têm.

Assim, o direito que tem de exprimir as suas opiniões ou revelar as suas preferências sexuais faz parte da sua dignidade pessoal e ninguém tem nada a ver com isso, porque o fez de forma consciente. Melhor – ponto fundamental -, até pode escolher não o fazer, é um problema exclusivamente seu. O meu problema prende-se com tudo aquilo que somos obrigados a fazer sob ameaça de violência pelo estado português. E, repare-se, há muito pouca dessa informação que é guardada no chip que tenha vantagem para o indivíduo que anda com ele. É, pelo contrário, quase tudo destinado à recolha de impostos que vai alimentar aqueles que, no fim do dia, são os que oprimem a nossa dignidade.  E estes já têm hoje acesso a quase tudo o que fazemos na vida, não apenas se visitámos ou não um site porno ou se metemos um “like” no “tweet” do Ventura. Eu até fico curioso se na Coreia do Norte conseguem atingir esta eficiência fascista. Quem sabe, até, não temos os organismos de “modernização administrativa” a exportar a nossa tecnologia de “chip no pescoço” para outras sociedades com necessidades semelhantes, como Cuba, a Arábia Saudita, etc.  Nada como uma boa perspetiva de comércio para o estrangeiro para justificar um completo absurdo.

Pode o leitor achar que estou a exagerar. Onde é que já se viu um estado decente como o nosso andar a investigar assim a vida das pessoas? Pense que há uma dezena de anos lhe diziam que os bebés iam ter um chip com um número único ou que se ia mandar um polícia recolher uma base de dados de pessoas que doaram dinheiro para uma greve. Não imaginaria, certo? É só uma questão de ir aceitando as coisas pouco a pouco. Uma coisa eu sei, numa democracia europeia, tudo isto é perfeitamente inaceitável, até naquela, virtual, que só existe no papel da nossa constituição e que difere em tanto daquela que temos. E durante tanto tempo se implicou com o preâmbulo da constituição que refere o caminho para o socialismo que passou a ser a única coisa que, de facto, se cumpre.

O melhor é esquecer tudo isto e lutar pela imposição de valores éticos às grandes empresas da internet que andam a controlar as nossas vidas por saberem onde é que o nosso carro andou. Aos monstros do capitalismo moderno, esses sim, que têm problemas éticos. Já a república portuguesa, essa, isentou-se de todas as penalidades por violação da privacidade dos dados pessoais. Portanto, caro leitor, não se esqueça de ir festejar o próximo 25 de Abril. Foi coisa que valeu a pena, oh se valeu!…

(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)
Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association, Professor e Investigador