O mundo é uma coisa fragmentada, por muitas conexões que se possam estabelecer entre variados acontecimentos. Todas as tentativas de fazer sentido dos conflitos que se passam à nossa volta estão condenadas a serem precárias. Se se pretende o contrário, se se pretende que o sentido está lá à vista, unívoco, e que devemos tomar absolutamente partido por uma das partes contra a outra, o mais certo é essa parcialidade nos fazer perder o contacto com a realidade. É óbvio que há muitas e notórias excepções em que as simplificações são legítimas e em que tomar partido é a única forma de estabelecer contacto com a realidade. Mas permanecem, mesmo que muitas, excepções. Regra geral, a busca do sentido a todo o custo cega e falseia tudo.

Isto vem a propósito das imagens que a televisão tem transmitido dos emigrantes de Calais que tentam chegar à Grã-Bretanha através do túnel da Mancha. Lendo coisas aqui e ali, e não apenas em Portugal, verifica-se que há duas posições dominantes. Ambas apelam, caracteristicamente, a princípios absolutos. Uma, que parte do sentimento de horror e começa logo a pensar em invasões bárbaras e outras catástrofes semelhantes. A outra, que se funda no sentimento de piedade e exige uma irrestrita hospitalidade universal, censurando muito vocalmente o egoísmo europeu: a culpa, definitivamente, seria nossa. E a verdade, é bom reconhecê-lo, é que as imagens de Calais têm com que entreter os adeptos das duas escolas de pensamento.

Primeiro, a escola do horror. A imagem dos quatro mil emigrantes de Calais que querem, através do túnel, escondidos em comboios e camiões, chegar a Inglaterra, pode provocar medo. Porque o comportamento do desespero se pode facilmente confundir com o da violência imotivada, e há muita gente que o confunde em absoluto. Daí a ver-se nos emigrantes o prenúncio de uma invasão em massa, vai um pequenino passo em muitos espíritos. Mas o que há a lembrar a quem pensa assim é o desespero que motivou a longa jornada de fuga de lugares de terror como a Somália, a Eritreia, a Síria, etc., e que passou pelo risco enorme dos barcos que partem da costa da Líbia e que se afundam um após outro, provocando, só este ano, à volta de dois mil mortos. Esta gente é herdeira dos balseros cubanos e dos boat people vietnamitas. Não ver isso, não se conseguir pôr no lugar do outro, por muito que se possa compreender a reação atávica do medo, parece falta de reflexão em demasia.

Depois, a escola da piedade. A escola da piedade ensina que só a má vontade e o egoísmo europeu justificam a crise. Em primeiro lugar, na origem, por uma cruel indiferença em relação aos sofrimentos das gentes de África e do Médio Oriente. E, a seguir, por uma violação do sagrado princípio da hospitalidade universal, que obrigaria a uma abertura permanente das portas dos Estados a quem lá quisesse entrar, sem condições de qualquer espécie. Ora, o problema aqui é que a hospitalidade universal, que é uma coisa óptima, obedece a regras e uma dessas regras é a da soberania dos Estados, que implica um certo número de condições que restringem uma livre circulação ilimitada. Fingir que isso não é assim é cometer o erro simétrico ao dos adeptos do horror. Neste caso, o de não se perceber que se os nossos Estados vão, apesar de tudo, funcionando bem, é exactamente por causa do cumprimento dessas regras, entre outras. Também aqui falta de reflexão em demasia.

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Quem apresentou o problema da maneira mais sensata foi, não por acaso, o primeiro-ministro inglês, David Cameron, que muita gente censurou pela sua expressão “enxame de pessoas”, julgada “extremamente inflamatória” e outras coisas assim. (Não discutirei aqui a questão complexa do real valor a atribuir à linguagem nas declarações dos políticos, embora me pareça que hoje em dia se cai facilmente no exagero policial). Ora, o que disse Cameron? No essencial, duas coisas. A primeira, que as pessoas acampadas em Calais estão ali porque querem uma vida melhor e que buscam a Grã-Bretanha porque na Grã-Bretanha há empregos, porque tem uma economia em crescimento e é um magnífico lugar para se viver. A segunda, que a Grã-Bretanha precisa de proteger as suas fronteiras. Não há, em qualquer boa lógica, contradição alguma entre a primeira afirmação, que reconhece as boas razões dos quatro mil de Calais, e a segunda. Que a boa lógica não sirva para resolver todos os problemas práticos, é um facto que não deve surpreender ninguém.

Isto que Cameron diz é muito mais sensato do que o que se escreveu na carta conjunta que os ministros do Interior do Reino Unido e da França, Theresa May e Bernard Cazeneuve, publicaram no Sunday Telegraph. Às tantas lê-se na carta que é um erro os emigrantes pensarem que as ruas europeias, particularmente as britânicas, se encontram pavimentadas com ouro. Ora, como notou Charles Moore no Daily Telegraph, para quem vem daqueles lugares, até as ruas gregas se encontram efectivamente pavimentadas com ouro. Por outras palavras, o comportamento daquela gente é mesmo perfeitamente racional.

May e Cazeneuve também falam na carta da necessidade de encontrar políticas de ajuda para a África e o Médio Oriente que impeçam que a crise migratória se prolongue. Francamente, aqui custa acreditar que acreditem naquilo que dizem. O que seriam essas políticas? Estimular na Líbia o aparecimento de um novo Khadafi que, com mão de ferro, impedisse qualquer barco de sair da costa da Líbia em direcção à Europa? Depois do entusiasmo com a “Primavera árabe”? Despejar dinheiro sobre os Estados africanos para, através do crescimento económico, suavizar os costumes? Mas toda a gente sabe que a política de despejar dinheiro sobre a África, levada a cabo durante décadas, não só não teve praticamente resultados positivos como, em muitos casos, ainda piorou as coisas. E quanto ao Médio Oriente? Como tencionarão May e Cazeneuve pôr sunitas e xiitas aos beijinhos uns aos outros e a amarem, de doce amor, cristãos e judeus? Não haveria Prémio Nobel que chegasse.

O mundo é mesmo uma coisa fragmentada, que não se deixa capturar por quem nele deseja encontrar uma ordem perfeita. Haverá sempre caos, sem-sentido, haverá sempre ordem relativa e haverá sempre quem busque fugir ao caos e encontrar refúgio e sentido para as suas vidas nos lugares de relativa ordem. Uns conseguirão, outros não. Na história, tudo foi sempre assim. Sem soluções miraculosas. E Calais, hoje, é um bom exemplo disso.