Na antecâmara das próximas legislativas, entre todos os imponderáveis que se colocam no horizonte, existem três indicadores aparentemente sólidos à direita. Em primeiro lugar, olhando para todas as sondagens realizadas até ao momento, o Chega deverá ter um resultado muito expressivo nas próximas eleições. Depois, e acreditando nas declarações públicas que foram fazendo, Luís Montenegro não conta com o Chega para coisa alguma e André Ventura não viabilizará um governo PSD de que não faça parte. Ora, se estas três variáveis se mantiverem constantes, sobra uma conclusão lógica: o Chega pode crescer muito e, mesmo assim, ser absolutamente inútil para as contas finais. A confirmar-se, Ventura terá o seu maior desafio enquanto líder partidário.

Olhando exclusivamente para a direita, existem dois cenários que, com alguma dose de realismo, se podem admitir. O PSD vence as eleições mas precisa do Chega para formar uma maioria no Parlamento; o PS vence as legislativas, mas o bloco da direita tem maioria na Assembleia da República. No primeiro cenário, Montenegro seria convidado a formar Governo, excluiria André Ventura e obrigaria o Chega a decidir o que fazer; Ventura, sendo fiel ao que já ameaçou fazer com cristalina clareza (20 de dezembro de 2023, SIC), derrubá-lo-ia na hora. O país seria de novo chamado a votar e os eleitores do Chega seriam confrontados com uma pergunta: se Ventura não serve para afastar o PS do poder, se o Chega não conta para fazer parte de uma solução à direita, serve para quê, conta para quê, afinal?

Obriga a honestidade intelectual que se reconheça que muitas das previsões que se iam fazendo antes de 7 de novembro, dia em que António Costa se demitiu perante o país, serão quase risíveis se lidas com os óculos de hoje. Portanto, tentar antecipar o que pode acontecer depois das próximas legislativas é, por idêntica razão, um exercício difícil, ambicioso e arriscado. Ainda assim, se os dois – Montenegro e Ventura – forem coerentes com o que têm dito, o líder do Chega arriscar-se-á a eleger 20, 30 ou 40 deputados, clamar vitória, e, ao mesmo tempo, não ser capaz de dar expressão a esse resultado. Pelo contrário: se se instalar a perceção de que um voto no Chega é inconsequente, André Ventura terá de continuar a convencer os eleitores a votar nele de forma expressiva. Mas para quê? E até quando?

De resto, o dilema que tem sido sempre colocado a Montenegro – o que fazer com e perante o Chega – teima em não ser colocado com a mesma intensidade a Ventura: prefere deixar passar o PSD ou correr o risco de perpetuar o PS no poder? Não é uma equação nada fácil de resolver – tanto que Ventura já assumiu que iria fazer tudo e o seu contrário. É o peso da nossa experiência comum a falar.

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Diz-nos a história que qualquer partido que derrube um governo acaba penalizado nas urnas. Em 1987, o PRD patrocinado por Ramalho Eanes ajudou a derrubar o primeiro Governo de Aníbal Cavaco Silva. Nas eleições subsequentes, foi praticamente varrido do Parlamento e Cavaco Silva teve a sua primeira maioria absoluta. Em 2021, Bloco e PCP chumbaram o Orçamento de António Costa. A seguir, o PS teve maioria absoluta e os partidos à esquerda ficaram reduzidos a mínimo olímpicos. A história nem sempre se repete, é certo, mas estes são os exemplos práticos que existem e são eles que compõem a grelha de análise com que todos se vão orientando.

Aliás, tal como o Observador explicava a 26 de dezembro, André Ventura está bem ciente desse risco e perfeitamente disposto a corrê-lo. A grande dificuldade é antecipar qual será o comportamento dos eleitores do Chega se Ventura concretizar a ameaça e derrubar um governo do PSD. Não é fácil caracterizar o eleitorado do Chega, nem este artigo tem pretensão de o fazer. Mas não andará muito longe disto: uma mistura heterogénea de gente que acredita de facto naquilo que Ventura diz e defende; de gente que deixou de se sentir representada pelos partidos mais à direita (não só, mas sobretudo) e que exige respostas concretas para problemas concretos; e de gente que elege o PS como principal adversário político.

Ora, se Ventura for consequente com aquilo que vem anunciando, estaria a frustrar as expectativas de uma parte considerável do seu eleitorado. Na eventualidade de o país ir de novo a votos, não haveria dia algum em que Montenegro não lembrasse que tinha sido Ventura o principal aliado de Pedro Nuno Santos. Não seria uma posição nada confortável para o líder do Chega e não seria fácil crescer a partir daí.

Tudo somado, Ventura, cujo talento para se afirmar como líder de um partido de protesto é inegável e factual — basta olhar para os resultados eleitorais do Chega e para a forma como em tão pouco tempo conseguiu condicionar todo o debate político e mediático — estaria na vertigem de ser vítima do seu próprio talento: o protesto pelo protesto é cimento pouco para um projeto de mudança. Tende a esgotar-se.

Existe ainda um segundo cenário, talvez o mais provável atendendo às últimas sondagens: o PS vence as próximas legislativas, mas o bloco da direita tem maioria na Assembleia da República. Nesse caso, Montenegro já garantiu que não formaria uma ‘geringonça’ à direita e tem sugerido que chumbaria um governo de Pedro Nuno Santos, o que implicaria novas eleições. O PSD dificilmente pouparia um líder que perdesse eleições em circunstâncias aparentemente tão favoráveis e seria bem provável que Montenegro recebesse guia de marcha.

Aí, seria um outro presidente social-democrata a decidir o que fazer com Ventura – e há muita gente, no PSD, no Chega, à direita, a suspirar por Pedro Passos Coelho, para quem os cordões sanitários em torno do Chega são um absoluto disparate. Mas, mais uma vez, não é crível esperar que num cenário de impasse, de eleições em cima de eleições, o Chega viesse a ser um beneficiário líquido de umas legislativas em que o apelo ao voto útil à esquerda e à direita fosse ainda mais extremado. Ventura poderia acabar esmagado pelas circunstâncias. É um quebra-cabeças bicudo: se ficar o bicho pega, se correr o bicho come.

P.S.: Não deixa de ser comovente que haja quem no PS, a começar por António Costa, acuse Marcelo Rebelo de Sousa de ter provocado uma enorme instabilidade por ter dissolvido a Assembleia da República e convocado eleições – argumento que, regra geral, vem acompanhado pelo “risco” do crescimento do Chega. Não sendo preciso notar o óbvio – foi António Costa quem desbaratou uma maioria absoluta que recebera nem dois anos antes –, a ideia de que eleições democráticas são sinónimo de instabilidade sofre de dois grandes vícios: a hipocrisia – não houve ninguém no PS a queixar-se da maioria absoluta que o partido recebeu nas últimas eleições em virtude de uma crise política provocada à esquerda; e o vício da infantilização dos eleitores, como se as pessoas fossem incapazes de escolher livremente aquilo que entendem ser melhor para elas e para o país. Às vezes é preciso lembrar que são os partidos que se têm de conformar com os votos dos portugueses e não o contrário.