1 As imagens e as descrições que nos chegam de Bucha, uma pequena cidade da região de Kiev, remetem-nos para o lado negro da humanidade. Execuções sumárias, corpos de homens, mulheres e crianças mutilados (de forma macabra e animalesca), mulheres violadas, valas comuns com mais de 200 corpos, crianças levadas em tanques como escudos humanos e dezenas de cadáveres espalhados pelas estradas de Bucha.

Vários testemunhos de residentes em Bucha ligam um regimento tchecheno das forças russas à atrocidade de atar as vítimas ucranianas com panos brancos antes de lhes dar um tiro de misericórdia como se fossem gado.

O massacre de Bucha só confirma os muitos e variados indícios de crimes de guerra por parte da Rússia de Putin na Ucrânia — por exemplo, já tinham sido detetadas situações semelhantes em Irpin a 28 de março. O ditador russo está a repetir no coração da Europa a estratégia que já tinha seguido na Síria: bombardeamentos massivos de alvos civis e destruição total das cidades para forçar um êxodo migratório. Se não há rendição, o ditador prefere matar através da fome e da falta de água.

Estas atrocidades podem fazer lembrar o massacre de Srebrenica ou outros semelhantes das diversas guerras da Jugoslávia no início dos anos 90. Contudo, o que a Rússia de Putin está a fazer é a repetir as táticas do horror comunista soviético — que se limitou a mimetizar os crimes do nazismo.

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2 No dia em que se começaram a conhecer as primeiras imagens das atrocidades em Irpin, um conjunto de 20 “personalidade” publicaram no Expresso uma carta-aberta intitulada “Pela Paz Contra a Criminalização do Pensamento” na qual tentam atacar uma espécie de alegado pensamento único sobre a Ucrânia que terá criado raízes na opinião pública portuguesa. E, enfatize-se, sem ainda terem conhecimento das atrocidades em Bucha.

O manifesto tem um propósito claramente aceitável: protestar contra o encerramento de canais de TV russos, como o “Russia Today” (RT).  Mas começa a descambar quando classifica a informação da RT, de forma manifestamente desproporcionada, como “isenta e plural”. Sendo uma ironia que os signatários argumentem que as verdades oficiais têm de ser combatidas (porque o “poder político” não é dono do pensamento), ao mesmo tempo que defendem a emissão no Ocidente de canais russos controlados pelo regime de Putin.

Contudo, e deixando de lado essas incongruências, pode-se discutir se a liberdade de expressão está a ser respeitada. É um debate válido, como já escrevi aqui.

O que já não faz sentido — nem mesmo a título de exagero retórico — é falar em “criminalização da pluralidade do pensamento”, num alegado “ambiente tóxico” de “crescente intolerância” que assombra e “censura” quem pensa de forma diferente. No lugar dessas vítimas da democracia “ocidental”, “temos opiniões irrelevantes e banais, sem referências éticas e uma maneira de ser flexível e fútil”. “Pode-se mudar mil vezes de princípios”, proclamam as “personalidades”.

Esta é mais uma ironia de um manifesto que é assinado por um mix de conhecidos militantes do PCP e do Bloco de Esquerda e de figuras da extrema-esquerda com vários independentes que fazem uma espécie de papel de idiotas úteis dos antigos comités pela paz tantas vez promovidos pelos comunistas europeus para executarem objetivos políticos.

3 O manifesto tenta servir de escudo a outras “personalidades” que têm tido grande generosidade das televisões para se fazerem ouvir com muitos pensamentos pró-russos. Aliás, até é assinado por uma desses comentadores: o major-general Raul Cunha.

Alexandre Guerreiro, contudo, é o alvo principal da medida de defesa da carta-aberta. Curiosamente, Guerreiro foi chamado à SIC Notícias na manhã deste domingo. Sem pôr em causa a veracidade das imagens que chegam dos subúrbios de Kiev, e apesar de defender uma investigação criminal internacional, Alexandre Guerreiro afirmou que não há “nenhum facto nem nenhum elemento que nos diga quem foi o autor deste tipo de massacre”.

Ou seja, tanto pode ser “Rússia” ou a “Ucrânia”. “Qualquer uma das partes pode ter feito uma atrocidade destas”, afirmou.

Como é possível pensar uma coisa destas quando se trata de uma cidade ocupada pelos russos há mais de um mês? Como é possível Alexandre Guerreiro afirmar que os militares ucranianos são capazes de executarem sumariamente, de violarem e mutilarem os seus próprios concidadãos? E como é possível não valorizar o facto de as imagens e os testemunhos terem sido recolhidos por vários órgãos de comunicação social internacionais após a reocupação da cidade por parte da Ucrânia?

É extraordinário ouvir Alexandre Guerreiro, um ex-espião do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa com uma narrativa predominantemente anti-ocidental, desvalorizar tudo o que represente um escrutínio factual da Rússia de Putin. Como também desvaloriza os relatórios de ONG’s como a Human Rights Watch e a Amnistia Internacional — entidades que, segundo Guerreiro, “têm interesses políticos.” Quais? Não se sabe.

O papel de Guerreiro é distorcer, desinformar e criar confusão entre a opinião pública. Será essa a liberdade de expressão pela qual os fundadores do regime democrático tanto lutaram?

4 Como escrevi há 15 dias aqui, e como sempre defendi ao longo de toda a minha carreira, sou a favor do pluralismo e da liberdade das direções editoriais para promoverem debates de ideias. E admito que a liberdade de expressão até possa comportar, em certa medida, o absurdo e a mentira.

Agora esse pluralismo não é algo que possa ser construído administrativamente, nem pode ser imposto por uma espécie de igualdade de armas e de tempo de antena para todas as opiniões que existam na sociedade. O pluralismo nasce da liberdade editorial dos meios de comunicação social. Não nasce de uma obrigatoriedade dos meios de comunicação em ouvir tudo e todos com o mesmo peso e relevância.

O caso da invasão da guerra da Ucrânia é um ponto de viragem para a União Europeia precisamente porque a a reação espontânea das diferentes opiniões públicas à invasão e aos argumentos da Rússia obrigou os governos nacionais a darem uma resposta conjunta. Se é claro que uma esmagadora maioria dos europeus defendem duras sanções à Rússia, tal não obriga a que os media tenham de dar o mesmo tempo e espaço a outras ideias.

O pluralismo também nasce das diferentes visões dos próprios órgãos de comunicação social. Por exemplo, os jornais devem refletir as diferentes correntes de pensamento da sociedade, tentando respeitar a proporcionalidade de cada uma delas. E é da visão de grupo dessas diferentes correntes que o público forma a sua opinião.

Resumindo e concluindo: Alexandre Guerreiro tem direito à sua liberdade de expressão mas caberá à SIC Notícias avaliar o momento em que a sua presença em antena ameaça a credibilidade da própria estação.

Texto alterado com correção de gralhas às 9h36m de 5 de Abril

[Nota: Este texto foi objeto de um direito de resposta do Bloco de Esquerda que pode ler aqui. ]