No momento em que escrevo este texto ainda desconheço a versão final do diploma que há de regular a direção executiva do SNS. No entanto, já se disse o suficiente para justificar um comentário cauteloso sobre os perigos que aí vêm.

A construção da figura de uma direção executiva para o SNS não é original, copia modelos nórdicos e britânicos, países onde os SNS Beveridgianos ainda sobrevivem.

O serviço nacional de saúde (SNS), a totalidade do sistema de saúde português carece de regulação e tem falta de governação (governance). Logo, esta tentativa de reorganizar a gestão e a governação do SNS poderá ser bem-vinda. Nada de errado na ideia que até pode pecar por ser tardia. Até agora, de acordo com a legislação de 1993, a governação tem sido feita pelas ARS e ACSS, com claro prejuízo na coordenação de cuidados, desde logo pela falta de canais nacionais de fluxo de doentes, e gerador de acentuadas inequidades ao nível da qualidade dos serviços prestados. No entanto, a forma como foi divulgada e criada a direção executiva, num diploma coxo sobre os Estatutos do SNS – demasiado palavroso e muito redundante -, surge como sendo um enxerto na estrutura organizativa do SNS.

Terei de aguardar pela leitura do diploma para me poder pronunciar com mais acerto. Uma coisa é certa, olhando para os modelos internacionais, uma direção executiva só poderá ter sucesso se a ela forem dados os meios humanos e materiais necessários, nomeadamente clareza na eliminação de conflitos de competências com as agências que não desaparecerem. Não pode ser mais uma camada burocrática, ainda mais ineficiente do que aquilo que temos.

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Atrevo-me a dizer que uma direção executiva com músculo e capacidade de punch precisará de incorporar serviços que agora estão em outros institutos como, por exemplo, a parte de prestação de serviços transfusionais do IPST, a emergência médica do INEM, a gestão financeira que está na ACSS, os sistemas de informação que estão na SPMS, quase todo o SICAD, as ARS (que não devem desparecer, mas deverão ser reformuladas), a execução dos programas prioritários de saúde, os ACES, hospitais e cuidados continuados (o que implicaria uma alteração de modelo da gestão partilhada com o ministério dos assuntos sociais e até, num futuro ideal, a construção de um ministério de saúde e bem-estar com a componente de assistência social e saúde sob a mesma tutela). Ficariam de fora da direção executiva:

  • o INFARMED (com a concentração de todos os produtos de saúde, incluindo os que andam “perdidos” na agricultura, e responsabilidades exclusivas sobre a elaboração de linhas de orientação terapêutica, atualmente dispersas por demasiados organismos ),
  • a futura agência de avaliação de tecnologias de saúde que urge criar para apoiar o INFARMED e o governo,
  • a IGAS (o organismo inspetivo do sistema de saúde e não apenas do SNS, convém lembrá-lo),
  • a DGS (autoridade sanitária devotada ao planeamento, vigilância epidemiológica e desenho de intervenções no campo da prevenção da doença e promoção da saúde),
  • o INSA (o laboratório sanitário nacional de referência),
  • a parte regulatória do IPST (o que decorre de obrigações no quadro da UE) e
  • a Secretaria Geral.
  • a ERS que deveria ficar com todas as funções de controlo de qualidade no sistema de saúde, incluindo auditorias, do Ministério da Saúde.

Isto, num esboço cru e passível de melhor reflexão e elaboração ao detalhe.

Lamentavelmente, por razões históricas, em que as personalidades dos dirigentes desempenharam papel relevante, a orgânica do ministério da saúde – passadas as PRACE e PREMACE em que estive envolvido – continuaram com excessivas sobreposições de funções e de hierarquias funcionais. Aceito a crítica de que poderia ter ido mais longe quando estive em funções que o permitiriam. Todavia, durante a intervenção da Troika e sob grande pressão, o enfoque estava na redução de lugares dirigentes e não na reorganização formal e prática da máquina administrativa.

De uma forma simples, a organização de uma instituição prestadora de cuidados de saúde, neste caso o ministério da saúde e não apenas o SNS (o ministério da saúde deve ser entendido como um prestador de cuidados enquanto for a primeira garantia de cumprimento da obrigação constitucional de garantir o direito à proteção da saúde), pode ser visto como a tentativa de solução dos seguintes problemas:

O que é preciso fazer?
O que são as necessidades?
O que é adequado fazer?
Quanto custa? Quem paga?
Como fazer?
Quem faz?
Foi bem feito?
Quem avalia?
Quem controla?

Se quisermos ter uma metáfora do que pode ser a prestação pública de cuidados, imaginemos uma estrada, mais ou menos sinuosa, quase sempre inclinada, com buracos onde ninguém os espera. Essa estrada será o contexto em que a saúde decorre, as pessoas, o ambiente, as doenças, as expetativas. Ora, esse caminho deve ser trilhado por um veículo, o SNS. Esse veículo vai tentando cumprir o caminho e para isso a carroçaria – as estruturas e os meios – deve ser mantida e o motor alimentado com o combustível. O carro do SNS precisa de manutenção constante e de financiamento adequado, idealmente com planificação plurianual, com reservas adaptáveis a imprevistos como pandemias. No veículo deve seguir um condutor – talvez seja o diretor executivo –, um navegador que vai dando as orientações, um mapeador que vai dando as coordenadas que informam o navegador e um passageiro que olhará para o caminho percorrido e avaliará os resultados da condução. Não vou conjeturar sobre as agências que cumprirão estas funções, mas elas têm todas de existir.

Mas a questão mais preocupante é termos assistido a toda a discussão sobre o diretor e não sobre a direção, estrutura complexa que deve ter muito mais do que um CEO, personagem ilustre que repousaria, sob aura, algures num gabinete que até pode ficar na Nova Guiné Papua.

Neste sentido, embora o governo se tenha esforçado a dizer que não ficará desresponsabilizado por haver um diretor do SNS, a verdade é que temos assistido à elevação de um nome à categoria de Messias. Temo que estejam a construir o altar para a imolação de alguém a quem já tiraram o período de graça, ainda nem foi formalmente empossado, e exigirão resultados imediatos que não poderá dar. Pior, entre outros argumentos, tem-se valorizado o facto do putativo diretor ser próximo do Partido Socialista. Não sendo um cargo político, embora de confiança, dever-se-ia prosseguir numa separação consequente do que é administração pública (técnica) e do que é governo (político). A administração fica, os governos são, desejavelmente, efémeros. O que não quer dizer que no campo das políticas públicas, em especial de saúde, as policies sejam continuadas, o que só é possível com uma administração pública robusta, institucionalmente forte e despartidarizada.

Será que o diretor executivo passará o crivo da CRESAP – modelo de que nem gosto particularmente – ou começará desde logo com a cruz de ser mais um “boy”? Será um cargo a que se concorrerá ou uma sinecura de nomeação política?

Deveria ter havido mais recato em todo este processo da nomeação de um diretor executivo para o SNS. Acima de tudo, desde já louvando os esforços de “normalização” da designação do escolhido que o senhor ministro da saúde tem feito nos últimos dias, é importante que a oposição não engula o isco e se dedique a “malhar” – ação bem do agrado do senhor Presidente da AR – no governo, em vez de perder tempo a criticar o futuro diretor do SNS. Um dos maiores erros da senhora DGS foi ter aceitado ser a correia de transmissão da ministra anterior, o que lhe minou a autoridade e aceitabilidade. Esperemos que o gerente da Pizarria, agora mesmo inaugurada no nº 9 da Avenida João Crisóstomo, em Lisboa, tenha todo o senso que muitas vezes falta a quem nos tem governado.

PS- Deveria ter anexado um glossário, dada a inusitada proliferação de siglas. Enfim, podem ir à net ver o que cada uma quer dizer. Imagino que deva haver uma app para essa função de descodificação de Direções Gerais e Institutos Públicos. Estamos On.