O que é que a discussão sobre as responsabilidades de Paulo Macedo nos tempos de espera tanto de um grande hospital como de um pequeno centro hospitalar de província tem a ver com as eleições gregas e com as primeiras decisões do Syriza?
A pergunta pode parecer disparatada, mas mais disparatada é a resposta que certamente virá à cabeça de alguns: o que une as duas situações é a austeridade, ou se preferirem diferentes respostas à austeridade.
Na verdade o que une as duas situações é algo mais complexo e mais profundo: as dificuldades das democracias contemporâneas, os limites das formas de governo que fomos construindo nos últimos dois séculos. O que ambos estes casos nos mostram é que estamos a chegar ao fim de um tempo e a entrar em território desconhecido.
Comecemos pelo caso da discussão sobre o que se passa nas urgências, mas poderíamos também dar inúmeros outros exemplos. A tentação é responsabilizar sempre o ministro. Isso ocorre porque é o mais fácil para os partidos da oposição, ocorre porque em Portugal é sempre o governo (qualquer governo em qualquer época) o culpado ou o herói, mas ocorre sobretudo porque o ministro é o “patrão” de facto dos hospitais e os utentes nunca pensam que são, ao mesmo tempo, os seus “accionistas”. Por isso o caminho da discussão é sempre o mesmo: se algo não funciona é porque “faltam meios”. Nunca é porque houve falhas de gestão, mau trabalho dos funcionários, falta de empenho ou simples incompetência. Aparentemente o ministro até tem de saber se as escalas de férias e folgas dos médicos estão bem feitas, e se estiverem mal feitas, apenas lhe cabe… contratar mais médicos.
Com este ou com qualquer outro governo teremos sempre discussões destas. Num tempo em que o Estado tende a ocupar-se dos cidadãos desde o momento em que eles nascem até àquele em que eles morrem, não apenas regulando a sua vida ao mais ínfimo detalhe – da quantidade de sal nos alimentos ao diâmetro das laranjas, passando pelos nomes que se pode dar a um filho ou pela distância a que um interruptor está do chão –, mas também tratando directamente das suas necessidades elementares, é natural que tudo o que nos corre mal acabe sempre na culpa de um qualquer ministro.
Em sociedades muito dependentes do Estado – em sociedades onde o partido-Estado, para utilizar uma expressão cunhada por Medina Carreira, é largamente maioritário – é natural que olhemos para os governos como responsáveis e responsabilizáveis por tudo. E que queiramos que os governos atendam às nossas mínimas necessidades, algo que os políticos também apreciam, pois quase sempre fazem a sua carreira de promessas de sempre mais e melhores serviços públicos.
Ao mesmo tempo que ocorre esta evolução, assistimos também à forma como os Estados foram perdendo soberania. O caso grego ilustra bem as contradições a que essa evolução conduziu. Por um lado, por estar num mundo globalizado, por ter integrado a União Europeia, por ter adoptado a moeda única, por se ter endividado e ficado à mercê dos credores, a Grécia é hoje um Estado de soberania limitada. Por outro lado, quando os seus eleitores vão às urnas como fizeram no passado domingo, votam como se tivessem na mão o seu destino. E, claro, partindo do pressuposto que a sua decisão democrática será respeitada. O facto de essa escolha democrática chocar com as escolhas democráticas de muitos outros povos europeus – para não dizer da maioria dos outros povos europeus – parece não fazer parte nem da sua equação, e seguramente não está a constrangir o seu novo governo.
O que estes dois casos ilustram é o paradoxal da situação que vivemos: por um lado, Estados com cada vez mais responsabilidades na vida dos cidadãos e de quem os cidadãos esperam cada vez mais coisas; por outro lado, Estados que perderam soberania e capacidade para actuar em função única e exclusivamente da vontade dos seus cidadãos. É uma contradição que não pode conduzir a nada de bom.
Chegámos a este ponto por vários caminhos. Um deles foi a orientação que demos aos nossos sistemas de governo, no fundo aos nossos Estados. Num livro recente e muito interessante, The Fourth Revolution, escrito por dois responsáveis da Economist, argumenta-se que o sucesso do modo de governo ocidental se baseou em três revoluções que reinventaram o Estado: o nascimento do Estado-Nação com Thomas Hobbes, a evolução para um Estado liberal com John Stuart Mill e o desenvolvimento do Estado-Providência cumprindo o sonho de Beatrice Webb.
Desde há sensivelmente quatro décadas que os limites e os defeitos do Estado social estão identificados, mas mesmo governantes como Thatcher ou Reagan não o conseguiram fazer recuar, apenas limitaram o seu crescimento (a despesa social com a dama-de-ferro estava em 22,9% do PIB em 1979 e ficou em 22,2% em 1990, quando saiu do poder). Como aqui referi recentemente, em todo o mundo ocidental, com poucas excepções como a Suécia, a tendência nas últimas décadas tem sido para esse peso do Estado crescer, apesar de todas as diatribes contra o “consenso de Washington” e as ladainhas sobre o “Estado mínimo”.
Hoje os Estados pesam nas economias valores inimagináveis (e considerados incomportáveis) mesmo por figuras muito associadas à necessidade de activismo dos governos, como Keynes ou Beveridge. Pior: Estados demasiado presentes e demasiado protectores acabam também por criar populações acomodadas, quando não dependentes, avessas ao risco e descrentes da iniciativa individual.
Ao mesmo tempo que os nossos modelos de Governo têm vindo a perder eficiência, nomeadamente quando comparados com modelos orientais menos democráticos, a globalização está a proceder a uma rearrumação da riqueza impensável há apenas 10 ou 15 anos. Se na viragem do século havia motins à porta do G8 contra uma globalização que supostamente espoliava os pobres do mundo, hoje há motins por a globalização ter arruinado as perspectivas de prosperidade do mundo desenvolvido.
Mas a globalização não tem apenas consequências económicas, tem também consequências políticas, pois também ela condiciona o poder efectivo dos governos. Basta pensar que, se os países e os consumidores querem beneficiar dos mercados que lhes permitem comprar televisores ou telemóveis fabricados na Ásia a uma pequena fracção do preço do que se fossem fabricados na Europa, isso obriga-os a abrir as fronteiras e deixa-os nas mãos dos mercados – os famosos e malvados mercados. De certa forma é aí que começa a perda de soberania, sobretudo quando a cultura dominante é a de um Estado muito protector e regulador.
No caso europeu, essa perda de soberania acentuou-se com a construção da União Europeia e, sobretudo, com a adopção da moeda única. Há quem argumente a favor de um tempo pós-soberano (como, por exemplo, Paulo Rangel, que até já chamou à soberania “a cadela de um cego”), mas a verdade é que ainda não se inventaram democracias “pós-soberanas”. Apenas há burocracias “pós-soberanas”.
O condimento final para agravar ainda mais a contradição entre governos de quem se espera tudo numa altura em que na prática perdem poderes é o facto de, no Ocidente, também estarmos a viver um outro momento crítico: o fim da certeza do crescimento económico. Há mais de duzentos que nos habituámos a um vigoroso – em termos históricos – crescimento económico, e esse tempo está a acabar, não apenas pela dificuldade de realizar reformas que tornem as economias mais competitivas e inovadoras, mas também porque sociedades mais envelhecidas como as nossas são, necessariamente, sociedades menos capazes de gerar crescimento.
São muitas nuvens que se têm vindo a acumular no horizonte e quase todos pedem mais do mesmo: mais Estado social, mais integração supra-nacional e menos soberania. Não é por aí. O caminho não é por aí.
Se queremos ter uma esperança de salvar a nossa forma democrática de escolher o nosso futuro (e não apenas votar em eleições que pouco efeito têm), se queremos voltar a ter algum dinamismo nas nossas sociedades (e não toda a gente encostada ao Estado), então temos de devolver poder aos cidadãos e à sociedade civil, mesmo que à custa de mais risco e menos proteção. Tal como temos de devolver aos Estados nacionais poderes que eles perderam, mesmo que à custa do sacrifício de sonhos de grandeza supra-nacionais.
Creio por isso que a crise grega é apenas a primeira de várias que se seguirão. Crises que talvez sejam mais políticas do que económicas ou financeiras, e por isso mesmo mais perigosas. Veremos.
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