Há dois anos escrevi neste espaço uma carta aberta ao Presidente da República sugerindo-lhe para que não se recandidatasse. Fi-lo por julgar que Marcelo Rebelo de Sousa tinha sido um mau presidente durante o seu primeiro mandato e, essencialmente, por considerar que seria pior no segundo. Por ser da opinião que um mau segundo mandato presidencial seria negativo para nós todos, inclusive para o próprio Marcelo Rebelo de Sousa.

As declarações do Presidente da República sobre o número de vítimas dos abusos sexuais por parte de membros da Igreja, a que se somam outras infelizes no decorrer dos últimos anos, inserem-se neste contexto. O seu pedido de desculpas que fez depender do ter ofendido alguém, como se os seus actos não fossem bons ou maus independentemente das suas consequências, como se as falhas de Marcelo não fossem suas, mas da responsabilidade do nível de sensibilidade e de afectação dos visados, mostra-nos que o Presidente da República não sabe lidar com os problemas. Pelo contrário, tem um jeito enorme para se descartar destes. Perante as ameaças que colocam em causa a hierarquia sobre a qual assenta a sua influência e exigem mais que a mera complacência, Marcelo usa da benevolência que exibe com agrado em jeito de tolerância para com os pobres de espírito sobre cujas vidas julga presidir. (Digo julga porque um Presidente não preside à vida de ninguém, apenas e tão só à estrutura do Estado). Mas o ponto essencial é que perante a contestação, a dúvida, a disputa, a incerteza e o receio, há algo de substancial em que Marcelo nos falta. De um Presidente espera-se, acima de tudo, vigilância. Que vigie o cumprimento da Constituição, das regras democráticas e de funcionamento do Estado de Direito. Que vigie o Governo, umas vezes em jeito de colaboração e outras, se necessário for, opondo-se a este nos termos da lei.

No Outono de 2020 já se sabia que os anos seguintes seriam difíceis. Não pela guerra na Ucrânia (inexistente) nem tão só pela pandemia (circunstancial), mas pelo adiamento sem fim das reformas no Estado que tornariam difícil a reacção do governo à estagnação económica e à inflação que já se adivinhavam. Pela sua forma de ser e de estar, Marcelo Rebelo de Sousa não foi a pessoa mais indicada para puxar por essas reformas nem seria a mais orientada para presidir ao Estado português. Habituado e condicionado pela popularidade, não aguentaria as primeiras críticas, os primeiros apupos, assobios, vaias e troças.

Como seria natural e era de esperar Marcelo não leu ou não ligou à carta aberta. E candidatou-se a um segundo mandato, numa altura em que o PS não tinha nem se esperava que viesse a ter maioria absoluta. Popular, bom comunicador, engraçadamente precipitado e divertidamente imprudente, e sempre com o beneplácito da imprensa, Marcelo tinha, com o seu jeito ligeiro e desembaraçado, a oportunidade de ouro para condicionar a governação. Foi essa tentação que o fez avançar e que fez com que perdesse o que ganhara até então.

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A maioria absoluta que António Costa conseguiu em Janeiro de 2022 tornou politicamente irrelevante o actual Presidente da República. Educado num meio que está além do cidadão comum, imbuído de uma percepção natural para reger os interesses do Estado, convencido que os portugueses são, na sua maioria, gente simples que deve ser conduzida por alguém como ele, Marcelo tem dificuldade em ser colocado de parte. O seu objectivo, desde a noite de 30 de Janeiro de 2022, é corroer a maioria absoluta socialista, não para a substituir por outra liderada pelo PSD, não para a trocar por uma com um projecto reformador, mas por algo indefinível e liderado por si, pela sua pessoa, a partir de Belém. Alguma coisa que lhe permita condicionar nos bastidores o jogo político que é suposto acontecer de forma aberta no Parlamento.

Um jogo de surdos que serve os interesses de António Costa, pois a postura de Marcelo divide e desgasta o PSD. Com Marcelo dificilmente há entendimentos entre a direita e Costa precisa de um PSD fraco. O Primeiro-Ministro prefere um Presidente que pensa como ele, que age como ele, que faz o mesmo jogo dúbio e ambíguo que ele, a um PSD forte e frontal que se entenda com a IL.

E é assim que chegamos ao facto espantoso de termos dois adversários políticos, Marcelo e Costa, duas figuras provenientes de partidos diversos e concorrentes, que se apoiam mutuamente quando cada um necessita de ajuda. Ambos integram o mesmo mundo, os dois provêm do mesmo meio que olha e divide o país como se de um quintal particular se tratasse. Um pôr e dispor cujo fim a ética republicana proclama aos sete ventos e festeja fervorosamente a cada 5 de Outubro e em todos os 25 de Abril. Não deixa de ser extremamente irónico a facilidade e rapidez com que um país que se queria moderno e europeu se deixou enrolar e cair em erros e fatalidades que dizia desprezar.

Até pode suceder que o governo de António Costa não chegue ao fim do mandato. Até pode acontecer que Marcelo consiga ser o árbitro que faz e desfaz governos. Até pode ser o que o actual chefe de Estado quiser e ainda secretamente deseja. No entretanto fica-se por ir comer um gelado ao Santini, em Cascais, ansioso por testar o povo. De mãos atadas pela maioria de Costa ou com as mãos livres com a queda de Costa, a Marcelo pouco mais resta que afastar a nódoa que nos últimos sete anos paira como um abutre por cima do seu legado.