Circulou recentemente a ideia, que o melhor modo de limitar as aglomerações nas urgências é impedir o acesso directo. As urgências só deveriam atender quem fosse enviado por um outro serviço, um Centro de Saúde ou estrutura equivalente. Ou seja, a triagem passaria a ser externa ao hospital. Esta sugestão é especialmente curiosa, sobretudo por revelar um problema corrente de análise: a confusão entre a causa e a consequência. Recordemos o que sabemos, ou deveríamos saber, sobre o SNS:

Sabemos que toda a receita cobrada pelo Estado em IRS (13,5 mil milhões de euros em 2020) mal chega para sustentar o Serviço Nacional de Saúde e apesar desta enormidade de despesa, este serviço público essencial não oferece um retorno satisfatório aos seus utentes.

Sabemos que qualquer discussão sobre o SNS, nomeadamente sobre o deficiente retorno daquilo que nele é gasto, é inquinado por um preconceito, como se quem ousar criticar o funcionamento do SNS, seja contra o serviço público de saúde.

Também é recorrente que a discussão pública das “soluções” para o SNS não sai habitualmente da esfera dos chamados “especialistas”, quando é notório que a maioria destes ou faz lobby a favor do sistema dos seguros de saúde ou tem uma visão puramente ideológica do serviço de saúde pública, como o único sistema que deve ter sustentação e apoio do Estado.

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A visão, a apreciação do utente e a experiência de quem precisa de recorrer ao serviço e não é atendido com um mínimo de dignidade, é normalmente respondido com promessas eleitorais de mais despesa pública com o SNS, apesar de também já sabermos, que atirar mais dinheiro para cima do SNS, não resolve nada, como comprova a confissão recente da ministra da saúde que um dos  problemas do SNS é exactamente a falta de organização, algo que já sabíamos, mas que é sempre interessante ser reconhecido pelo titular do sector.

Se o problema é mesmo de organização, já foi questionado se não é por ser demasiado grande que o SNS se torna impossível de gerir com eficiência?

Não é um facto que o SNS é palco de infindáveis conflitos de interesses corporativos, com médicos vinculados, médicos tarefeiros, empresas de trabalho temporário, enfermeiros, auxiliares, técnicos de diagnóstico, assistentes operacionais e administrativos, laboratórios, farmacêuticas etc. etc., uma espécie de salada russa crónica, apenas possível de manter pela injecção sistemática de mais dinheiro público?

Tentando tapar o sol com a peneira, tem-se usado o sucesso do plano de vacinação Covid, como um exemplo do bom desempenho do SNS. Ora tal afirmação é uma enorme fraude política. A estrutura do SNS foi apenas uma parte da operacionalidade do plano e ainda que sendo apenas uma parte, o SNS deixou durante a pandemia de executar todas as suas restantes obrigações com os doentes não-Covid, para se poder dedicar à tarefa. De facto, a direção do plano de vacinação foi militar, boa parte dos meios à disposição foram fornecidos por terceiros: autarquias, fundações, associações civis, hospitais particulares e misericórdias, estruturas físicas temporárias, pessoal contratado especificamente para essa tarefa e muitos voluntários. Levantado o arraial, como de costume e seria previsível, o rei vai nu. Voltou o velho SNS, que nunca saiu do mesmo sítio e como um aluno muito burro ou muito negligente, nunca aprende e parece ser irreformável como uma múmia.

É neste contexto que nascem ideias peregrinas como a limitação do acesso às urgências, imaginando a participação de estruturas a montante, que só existem em teoria. Acontece que a realidade – essa maçada que é a realidade – é que os nossos Centros de Saúde não prestam. Sim, o termo só pode ser este: não prestam. Possuem horários de funcionamento ridículos; carecem de meios de diagnóstico; os médicos estão presentes apenas em algumas horas do dia e para atenderem consultas pré-agendadas há meses ou anos, as instalações são em muitos casos uma miséria em espaço e conforto; os Centros de Saúde não atendem o telefone, os funcionários administrativos são poucos e na sua cara o que mais se vê é a atenção ao relógio, para saírem dali o mais depressa possível.

Quem repentinamente se sentir doente, com febre, com dores no peito, com tonturas ou qualquer outro sintoma de alarme, que não sabe se é ou não grave, dirige-se a um Centro de Saúde? Para o reenviarem de imediato para um Hospital? Então poderá poupar tempo e ir para este directamente.

A próxima campanha eleitoral vai decorrer numa fase de inverno, que com mais gripe ou mais Covid, as aglomerações nos hospitais vão ser uma constante e por isso susceptiveis de influir em tempo real nas opções de voto.

Além das habituais promessas irrealistas ou demagógicas, como a de injectar ainda mais dinheiro no SNS sem retorno desse investimento na qualidade dos serviços de saúde dos utentes, como até agora tem sucedido, iremos ter alguma força partidária que apresente e se comprometa com um programa de reformas do SNS virado para o cidadão? Por favor não venham com mais alterações de “Leis de Bases”.

Expliquem concretamente como vão contratar mais médicos e enfermeiros. Como vão reformar e dotar de meios e equipamentos os Centros de Saúde. Como vão organizar o que está desorganizado.

Com 13 mil milhões de euros de orçamento, não é possível fazer isso? Então, explique-se porquê e digam o que é necessário e onde tencionam encontrar o dinheiro ou reduzir a despesa noutro sector em benefício deste, que é o que mais preocupa a maioria da população. Façam escolhas e sujeitem essas escolhas ao sufrágio dos cidadãos. Mas com clareza. Talvez assim o futuro governo seja parte da solução e não parte do problema.