A poucas semanas das eleições europeias para o Parlamento Europeu (26 de maio) as sondagens dão-nos resultados mistos, contraditórios, a abstenção continua a ser a maior incógnita e o voto jovem um verdadeiro desafio à imaginação. Há, claramente, uma desafeição emocional significativa pelas instituições europeias e pelo “sistema remoto” que elas representam. Vale a pena contextualizar o problema para perceber melhor o “estado da arte da representação política europeia”. No final, em seu nome e benefício, invocarei “O Roteiro dos Quatro Presidentes”, o meu voto de confiança política nas principais instituições europeias.

A contingência europeia

É preciso remontar a última década para entender o atual estado da arte da representação política europeia. Entre 2008 e 2018, tivemos uma crise financeira global, com origem nos EUA, que se propagou rapidamente ao sistema bancário europeu. Para evitar a propagação do risco sistémico bancário, os estados nacionais foram obrigados a intervir (alguns nacionalizaram) gerando mais dívida pública e aumentando a carga fiscal junto dos contribuintes. Sem o impulso do sistema bancário e sem a intervenção estabilizadora dos estados a situação económica abeirou-se rapidamente da recessão, criando falências, desemprego, desigualdade, emigração, empobrecimento e ainda mais crédito malparado no sistema bancário.

Entre 2011 e 2014, foi necessário um programa de ajustamento económico e financeiro e o patrocínio da Troika para evitar, em Portugal, a bancarrota do país. Nos últimos quatro anos, a conjuntura externa favorável facilitou a recuperação do país no plano das exportações, do desemprego, do défice orçamental e da capitalização bancária, mas persistem desequilíbrios estruturais importantes que importa monitorizar com muito cuidado, pois continuamos a navegar ao sabor do ciclo económico. Refiro-me, em especial, ao desemprego jovem, à precariedade dos empregos oferecidos, às baixas qualificações da população ativa (sobretudo, no setor secundário), aos baixos salários, à deterioração dos serviços públicos, à falta de habitação para arrendamento a jovens casais e, em geral, ao empobrecimento das classes médias que transitaram progressivamente para situações de desemprego intermitente e cada vez mais longo, reforma antecipada com penalizações e encargos adicionais com os filhos que permanecem até mais tarde em casa dos pais.

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Todavia, na última década, para lá da crise da zona euro, ainda não inteiramente resolvida, tivemos, também, uma acumulação inusitada de fatores geopolíticos que serão, nesta altura, em véspera de eleições para o Parlamento Europeu, uma das principais ameaças a pesar no futuro próximo da União Europeia.

Olhemos para a orla fronteiriça da União Europeia. A fonteira sul, depois das revoluções da primavera árabe, está mergulhada num caos profundo de estados falhados. A fronteira leste, é uma região de guerra aberta e permanente de todos contra todos. Na fronteira norte, assistimos ao regresso da velha Rússia e à política dura das áreas de influência, como já aconteceu na Geórgia, Crimeia e Ucrânia. Na fronteira ocidental, finalmente, o Brêxit e a eleição de Trump, transformaram o velho mundo ocidental e o atlântico, em especial, num lugar muito menos pacífico e previsível.

As consequências desta instabilidade geopolítica são muito onerosas para a União Europeia. Desde logo os fluxos migratórios e erráticos de população com origem no Mediterrâneo e no Sahel africanos. Em segundo lugar, a impotência e mesmo a irrelevância geopolítica da União Europeia para lidar com os problemas do Médio Oriente. Em terceiro lugar, o verdadeiro clima de guerra fria que se instalou nas relações com a Federação Russa. Finalmente, a crise profunda do multilateralismo liberal, atlântico e cosmopolita que tinha sido criado pela ação direta dos EUA e do Reino Unido e que, agora, se vê posto em causa pelo Brexit e pela presidência americana.

Depois do mundo bipolar e da hegemonia unilateral americana dos anos noventa, este vazio de poder, consentido pelas potências do velho mundo ocidental, está agora a ser ocupado por uma multipolaridade emergente e, em particular, por uma trilateral – EUA, CHINA, RÚSSIA – onde parece não constar a União Europeia.

Esta contingência geopolítica externa tem, por outro lado, uma expressão própria no plano doméstico dos estados membros da União, e acumula fatores críticos de ordem estrutural nas áreas do envelhecimento demográfico, alterações climáticas, transformação digital, alterações ao modelo social europeu e integração de refugiados e fluxos migratórios.

É esta acumulação inusitada de riscos, é esta “desesperança no futuro”, onde o elevador social parece não funcionar, que estão a minar, a pouco e pouco, a confiança nas instituições e a criar uma desafeição emocional que transforma um eventual voto positivo num voto de protesto pleno de azedume político. O sistema político-partidário não escapa a esta desesperança e desafeição e é neste “caldo emocional” que surgem novos partidos e movimentos apelando à indignação, ao nacionalismo, à pureza da cidadania, ao regresso às origens, à soberania do povo, contra o sistema instalado, as elites corruptas, as clientelas do costume e os burocratas das instituições europeias. O resultado a que assistimos é a pulverização do sistema político-partidário, a proliferação e confusão das mensagens políticas, no final, a um debate europeu votado ao fracasso e consumido pelo espetáculo mediático.

Uma agenda para o futuro da Europa: o “Roteiro dos Quatro Presidentes”

É neste contexto extraordinariamente contingente e adverso que têm lugar as eleições europeias. Apesar de estarmos perante um “caldeirão de emoções e sentimentos” que, em si mesmo, constitui o alibi perfeito para fazer passar uma mensagem de azedume, amargura e desafeição (basta ver os debates televisivos), quero terminar de forma positiva, com uma agenda para o futuro da Europa, uma espécie de programa de trabalho para os próximos parlamentares. Para o efeito, pode ser útil a figura da “cooperação reforçada” que está prevista nos tratados europeus (Título III, artigos 326º a 334º):

O reforço da política europeia de juventude

Este é, porventura, o melhor antídoto, a médio e longo prazo, para combater a ascensão dos movimentos nacionalistas e radicais. Refiro-me, em especial, ao reforço do espaço europeu de educação, ao espaço europeu de investigação e desenvolvimento, ao serviço europeu de voluntariado e ao corpo europeu de solidariedade, instrumentos fundamentais para criar uma cultura europeia de empatia, fraternidade, altruísmo e solidariedade.

A criação de uma procuradoria europeia para o combate à criminalidade organizada,

A iniciativa já existe, mas é necessário dar-lhe continuidade, tanto mais quanto a criminalidade organizada assumirá formas muito sofisticadas com a criação do mercado único digital, por exemplo, nas áreas da pirataria informática, a proteção de dados e a privacidade dos cidadãos, a guerra cibernética e a cibersegurança.

A criação de uma autoridade europeia para a regulação do mercado único digital,

A regulação do mercado único digital é uma tarefa fundamental da União Europeia, não apenas por razões de estrita política de concorrências, mas, na circunstância, por razões que têm a ver com a criação dos chamados “campeões europeus” em matéria tecnológica e digital; dito de outra forma, até que ponto quer a União Europeia estar totalmente dependente da política própria dos conglomerados tecnológicos americanos e chineses para a implementação do seu mercado único digital?

Uma “cooperação estruturada e permanente” na área da defesa e segurança comum,

Esta área de cooperação nunca foi tão crítica como hoje e, nunca como hoje, foi tão difícil reunir as condições necessárias para avançar nesta direção. Basta atentar na extrema contingência que afeta toda a orla fronteiriça da União Europeia para perceber que estamos perante um fator de risco iminente que só uma cooperação estruturada e permanente, dotada de um substancial reforço de meios, poderá enfrentar. O reforço do Fundo Europeu de Defesa vai nessa direção.

O reforço do mecanismo europeu de proteção civil para os grandes riscos,

O mecanismo já existe, mas, dada a frequência, a intensidade e a gravidade das ocorrências, é absolutamente necessário um reforço substancial desse mecanismo, não apenas como instrumento de redistribuição de meios nacionais, mas, também, como suplemento efetivo de meios de prevenção, deteção e comunicações de emergência.

Uma cooperação reforçada para o combate à fraude e evasão fiscal e financeira,

A criação de bens comuns europeus como aqueles que referimos antes requer meios financeiros adicionais, logo, que façamos um combate sem tréguas à fraude e evasão fiscal e financeira; o capitalismo digital leva vantagem e tira partido da sua declarada extra-territorialidade, uma razão adicional e uma oportunidade para que o mercado único digital seja exemplar nesta matéria.

Um mecanismo de garantia comum dos depósitos (3º pilar da união bancária),

A união bancária é composta por três pilares: a supervisão, a resolução e a garantia comum de depósitos. Os dois primeiros estão já em vigor, o terceiro permanece em compasso de espera. Esta indefinição não é boa conselheira e é mais uma razão para criar desconfiança e desafeição emocional nas instituições por parte dos cidadãos europeus.

Uma cooperação reforçada na área das migrações e ajuda ao desenvolvimento,

Como se constata facilmente, um mecanismo como o Frontex para a gestão da fronteira comum e um instrumento como o Fundo Europeu de Desenvolvimento, sendo indispensáveis, não são suficientes para lidar eficazmente com a vaga migratória e os problemas de subdesenvolvimento que afetam os países de origem dos fluxos migratórios. Além disso, este problema é inseparável da segurança regional e do combate aos movimentos radicais, sendo necessário desenhar para cada área geográfica uma engenharia multilateral de segurança e desenvolvimento.

O reforço dos mecanismos estabilizadores da zona euro

Como dissemos, a crise da zona euro não está inteiramente resolvida, a Itália é neste momento a maior preocupação devido à sua gigantesca dívida pública e também devido à sua “rebeldia orçamental”. Por outro lado, o ajustamento promovido por Bruxelas não pode ser pro-cíclico sob pena de agravar ainda mais a situação. Assim sendo, a zona euro precisa de criar mecanismos de estabilização que reduzam os choques assimétricos e favoreçam os seus impactos anti-cíclicos.

O reforço da convergência e da capacidade orçamental e financeira da União Europeia

Não basta estabilizar, é preciso convergir. Além disso, quase todas as cooperações reforçadas mencionadas exigem acréscimo de recursos financeiros e uma engenharia muito mais imaginativa. A revisão das funções do BCE no sentido de uma reserva federal e uma política orçamental mais assertiva, com mais recursos próprios (a fiscalidade europeia) e maior capacidade financeira (emissão de dívida europeia) parece-me fundamental.

Nota Final

Como é evidente, em cada uma destas áreas-problema irá variar o policy-mix: o âmbito da cooperação, a natureza da intervenção, o processo decisório e o mix de financiamento. Para uma verdadeira “teoria das cooperações reforçadas” talvez os “Quatro Presidentes” se devessem entender (Comissão, Parlamento, Conselho de Ministros e Conselho Europeu) para aprovar um roteiro político para as quatro instituições. Sem esse Roteiro e sem um reforço significativo da capacidade orçamental da União e da zona euro, em especial, o aumento dos recursos próprios, a fiscalidade europeia, a emissão de divida pública europeia, receio bem que o debate europeu fique substancialmente esvaziado e nas mãos das agendas domésticas. Resta dizer que um pequeno país como Portugal, pela sua exiguidade especifica, estará sempre muito vulnerável em todas estas áreas. Por isso mesmo, votar bem é um imperativo ético e político da maior relevância.

Professor da Universidade do Algarve