1. Um ministro das Finanças que é venerado pelos seus concidadãos não é algo muito comum em democracia. Hans Eichel, ministro das Finanças alemão entre 1999 e 2005, pode dizer que passou por essa experiência quase única.

Mal chegou ao poder integrado no Governo do SPD/Verdes liderado por Gerhard Schröder — que colocou fim ao poder de 16 anos da CDU de Helmut Khol –, Eichel encontrou um déficit orçamental crescente que colocava a Alemanha numa situação complicada face aos critérios de convergência da União Económica e Monetária prestes a inaugurar o euro. O social-democrata não teve meias medidas e cortou uma só penada cerca de 15 mil milhões de euros em despesa pública. Só para o leitor ter um termo de comparação, o Governo de Passos Coelho teve de aplicar medidas de austeridade que levaram ao corte de cerca de 5 mil milhões de euros de despesas públicas mas num período entre 2012 e 2015.

Ao contrário do que aconteceu com Vítor Gaspar (e aconteceria com qualquer outro economista que aplicasse o memorando da troika enquanto titular das Finanças), Hans Eichel ganhou a admiração dos eleitores alemães porque abriu caminho para que a Alemanha atingisse um objetivo visto como positivo: o orçamento com saldo zero entre despesas e receitas.

Como prémio, começou a receber centenas de porquinhos mealheiros no Ministério das Finanças que enalteciam as poupanças estruturais que tinha conseguido. Alguns anos depois, Wolfgang Schaulbe atingiu o superativ orçamental (tão criticado pela extrema-esquerda e esquerda do sul da Europa) e saiu do Governo como o ministro mais popular do Governo de Angela Merker.

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Hans Eichel e os seus porquinhos mealheiros foram recordados recentemente pelo Financial Times a propósito da inauguração de uma exposição no Museu Histórico da Alemanha, em Berlim, que demonstra a importância da poupança na cultura alemã desde o séc. XVIII.

2. Enquanto os alemães poupam 10% do seu rendimento disponível (o dobro da média europeia ou dos Estados Unidos), poupar em Portugal passou a ser sinónimo de salazarismo e de atraso cultural com o desenvolvimento da sociedade de consumo e a entrada no euro. A taxa de poupança portuguesa atual representa metade da alemã. Mas, acima de tudo, a erosão da poupança dos hábitos portugueses representa um fator de desequilíbrio do próprio sistema financeiro. Enquanto a Alemanha é dos países europeus com menor percentagem de habitação própria (leia-se proprietários) e criou um sistema de caixas de poupança que historicamente financiou investimentos de autoridades municipais e federais em obras públicas, os bancos portugueses apostaram desde os anos 90 do século passado em crédito ao consumo, em crédito à habitação.

Resultado: com a descida sustentada da poupança e depósitos, os bancos foram obrigados a endividar-se no estrangeiro, promovendo o aumento da despesa privada. O Estado não lhe ficou atrás com o brutal investimento em parcerias público-privadas duvidosas da era do Governos de António Guterres, Durão Barroso e José Sócrates. O que faz com que a dívida pública tenha atingido um pico de 130% do PIB (contra cerca de 50% em 2000), a dívida do sector empresarial privado chegue aos 141,7% do PIB e a das famílias seja de 75,4% em agosto de 2017.

3. É verdade que o Governo de António Costa está de parabéns, como assinalou a Helena Garrido aqui, a propósito do resultado histórico do défice orçamental em 2017 anunciado pelo Instituto Nacional de Estatística: 0,92% do PIB.

É igualmente certo que a despesa com salários desceu em função do PIB (11%, um mínimo histórico, segundo dados do Conselho de Finanças Públicas) mas se esquecermos o rácio (que devido à subida do PIB acaba por ser igualmente mais favorável), o valor absoluto da despesa cresceu quase mil milhões de euros face a 2015 (dados do INE).

Mas a verdadeira falta de vontade do Governo da Geringonça em apresentar uma reforma digna desse nome que ajude a reduzir de forma estrutural a despesa pública é o grande fundamento para desconfiar desta festa. Do ponto de vista prático, António Costa está a recolher os frutos das políticas que foram aplicadas nos anos da troika e que aumentaram o investimento (nomeadamente, na grande causa do crescimento atual: o turismo), não implementando uma reforma digna desse nome seja em termos de organização do Estado, seja em termos da reforma urgente da Segurança Social — e só para citar as componentes salariais e de pensões. Tal como também foi incapaz de aplicar reformas que reforcem a competitividade da economia portuguesa.

4. António Costa bem pode ter encontrado a fórmula mágica para lutar pela maioria absoluta em 2019, conseguindo bons resultados orçamentais e económicos conjunturais, ao mesmo tempo que gere uma maioria parlamentar que é adversária de qualquer reforma estrutural e do investimento privado. Pode ter conseguido criar a maior carga fiscal desde 1995 sem que nenhum sobressalto se verifique na opinião pública face às suas promessas de não aumentar os impostos. Bem pode até elogiar cinicamente o líder da oposição — verdadeiramente ausente da luta política, com prejuízo para o país.

Tudo isto pode ser feito perante o aplauso geral mas a realidade e os sinais de alerta estão aí. O Governo pode querer ignorá-los mas a realidade não desaparece com a mesma fórmula mágica.

A dívida pública tem uma rota de descida ainda muito tímida (situa-se agora nos 125,7% do PIB) e os maus hábitos dos consumidores portugueses estão a regressar. Em 2017, os bancos emprestaram cerca de 15 mil milhões de euros em crédito à habitação e ao consumo — o que representa um aumento de 26% face a 2016 e já levou o Banco de Portugal a tomar medidas.  Como uma reportagem recente do Edgar Caetano e do David Almas assinalava, as “pessoas já se esqueceram da crise”. Mas não deviam. Porque continuam a pagar as faturas apresentadas pelo BPN, BPP e BES na última crise e a política de juros historicamente baixos induzidos pelo Banco Central Europeu deve terminar em 2019.

Mário Centeno também gostava de receber a admiração e até prendas dos seus concidadãos, como aconteceu com Hans Eichel. Mas é pouco provável que o consiga. É que ao contrário do seu colega, que é encarado na Alemanha como um dos grandes reformistas da economia alemã com o programa “Agenda 2010” que flexibilizou a lei laboral e alterou as regras da segurança social, Centeno faz parte de um Governo que só faz navegação à vista.

Em vez de um porquinho mealheiro, é mais provável que Mário Centeno receba bilhetes para ver os jogos do Benfica de que tanto gosta. De preferência, comprados a crédito ou com títulos de dívida pública.

Artigo atualizado com os dados estatísticos sobre a dívida pública que foram publicados esta manhã, dia 2 de abril de 2018, pelo Banco de Portugal