1Há muito que se diz que Portugal vive um inverno demográfico devido à baixa taxa de natalidade e respetiva perda de população — com todas as consequências perniciosas que daí advém para o futuro do país. A esse inverno juntou-se, para grande infelicidade da nossa comunidade, outro igualmente grave: o inverno da ética, da integridade e do simples respeito por noções básicas como o certo ou errado.

Vivemos um verdadeiro inverno do nosso descontentamento. Vivemos um tempo em que o essencial é trocado pelo acessório, em que a verdade é algo dispensável, em que a responsabilização política pura simplesmente não existe (pelo contrário, deu lugar um vazio em que tudo é permitido) e em que somos bombardeados diariamente com narrativas que tentam esconder o óbvio: o regime está doente, o que significa dizer que a democracia está seriamente doente às portas do 50.º aniversário do 25 de Abril.

Esconder isso em nome da sobrevivência política de um primeiro-ministro que foi obrigado a demitir-se e do desejo de um partido de se eternizar no poder, significa agravar ainda mais os problemas de falta de confiança dos portugueses nas instituições democráticas e potenciar o voto em forças extremistas, populistas e demagógicas — e não o Chega não é a única dessas forças, há outras como o Bloco de Esquerda e o PCP.

E, mais importante do que isso, ocultar o diagnóstico impede a regeneração do regime — que ainda é possível e é obrigatória. E tal regeneração também inclui o poder judicial — que será abordado num próximo artigo de opinião.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

2Não quero abordar neste artigo qualquer matéria penal relacionada com a Operação Infuencer ou com o caso das gémeas. Quero abordar, sim, todos os problemas a montante desses (e de outros) processos judiciais porque só com um diagnóstico e medidas preventivas é possível evitar a sério a judicialização da vida política.

À Justiça não cabe o papel de moralizar a vida pública mas a intervenção judicial pode, e deve, ser evitada pela classe política se esta quiser agir preventivamente, aplicando mecanismos, regras e procedimentos que visem impedir conflitos de interesse, a falta de transparência e a promiscuidade entre o poder público e o económico. Em suma: agir preventivamente para evitar a prática de ilícitos no exercício de funções públicas.

Vamos começar por aquele que é o problema a montante de toda a Operação Influencer: a contratação de Diogo Lacerda Machado como conselheiro especial do primeiro-ministro António Costa para diferentes temáticas, como os lesados do BES, a saída de Isabel dos Santos do BPI ou a reversão da privatização da TAP.

António Costa decidiu contratar Lacerda Machado em 2016 sem qualquer contrato nem remuneração. O primeiro-ministro sempre entendeu que não era necessário qualquer tipo de formalismo. O que diz muito sobre a forma como Costa se vê a si próprio — alguém que está no Olimpo da seriedade e dispensa os formalismos que se aplicam a todos os comuns mortais que tenham passado por São Bento.

Se quisermos, essa é a definição da autocracia. Todos os autocratas se julgam sérios — nunca estudei nenhum que se julgasse corrupto — e estão sempre acima de todos os outros políticos. O que faz com que o exercício do poder não tenha que respeitar as regras e a lei.

É muito curioso recordar a forma como António Costa reagiu quando foi confrontado com a polémica da contratação de Lacerda Machado em 2016. Pressionado, Costa lá foi obrigado a contratar o seu melhor amigo mas insistiu que Lacerda não estava ali pelo dinheiro.

Pior: o primeiro-ministro sempre considerou que a existência de um contrato não tornava a relação mais transparente. “É simplesmente mais caro para o Estado” e era uma despesa cujo “dinheiro podia não ser gasto”. Ou seja, estando em causa pessoas sérias é óbvio que as regras não têm de ser iguais à arraia miúda — sobre a qual há razões fundadas, obviamente, para desconfiar.

Aliás, António Costa nunca percebeu o “interesse” dos media por Lacerda Machado, chegando mesmo a classificar tal interesse como “absolutamente estonteante”. Lacerda era um simples “conciliador” ou “mediador”. E ainda por cima trabalhava de borla!

Isso é certo ou errado?

3 Sem entrar em grandes considerações sobre o facto de António Costa estar a contratar para seu conselheiro o seu melhor amigo, basta só considerar que nenhum dirigente da administração pública (AP) tem o mesmo privilégio devido ao Código de Procedimento Administrativo, que impede a contração de familiares diretos mas também de alguém próximo do circulo social do respetivo dirigente da função pública.

E a pergunta que se impõe é simples: se os dirigentes da administração pública não podem, por que razão o primeiro-ministro, o líder da administração, pode? Será que agora todos os membros do Governo podem passar a contratar os seus melhores amigos para conselheiros pessoais? Se sim, porque não contratar o irmão, o pai, a mãe ou os avós? Ou o periquito?

Outra questão prende-se com a ausência de escrutínio da opinião pública. Tudo isto se passou em frente dos nossos olhos e a pergunta que deixo é simples: quantos de nós levantaram a voz ou censuraram algo tão obviamente censurável — e admitido de viva voz pelo próprio António Costa com a arrogância que o caracteriza?

Muito poucos, o que também revela uma ausência de escrutínio e de falta de critério, nomeadamente da comunicação social. A ideia assente é que a confiança política justifica todo o tipo de contratações — e não justifica, de todo em todo. Basta ver o caso de Lacerda Machado.

Isso é certo ou errado?

4 Já agora, outro pormenor relevante. Diogo Lacerda Machado é chairman desde 2012 de um banco na Guiné Bissau chamado Banco da África Ocidental, detido maioritariamente pela empresa Geo Capital — uma empresa que nasceu de um investimento do magnata do jogo Stanley Ho, na qual Almeida Santos chegou a ter 5% do capital e à qual terá estado ligado Ambrose So, um comunista chinês que chegou a ser membro da Comissão de Relações Internacionais do Conselho Consultivo da República Popular da China, segundo o jornal Público.

Além de outros cargos em bancos africanos, como o Moza Banco (onde, uma vez mais, há ligações políticas, desta vez a um alto funcionário da Frelimo e ex-presidente do Banco de Moçambique chamado Prakash Ratilal), Lacerda Machado é chairman — vale a pena repetir — de um banco de um país como a Guiné Bissau, reconhecido por várias instituições internacionais (como as Nações Unidas) ou países (como os Estados Unidos) como um narco-Estado em que as instituições políticas estão à mercê dos traficantes de droga sul-americanos que utilizam aquele país africano como plataforma de distribuição.

Mais: o Banco da África Ocidental é apresentado em praças financeiras como Singapura como uma sociedade que “ajuda a fornecer à economia chinesa, em plena expansão, os recursos de que necessita para continuar a sua espantosa expansão económica”. Portanto, tem fortes ligações à China — um país comunista que não faz propriamente parte dos aliados naturais de Portugal e com o qual a União Europeia tem tido cada vez mais uma política de confrontação, nomeadamente por razões económicas e de segurança.

Tudo isto para dizer o seguinte: que campainhas tocaram no gabinete do primeiro-ministro, no Governo e no PS sobre as ligações de Diogo Lacerda Machado ao poder económico chinês ou a bancos que constituem um risco claro reputacional a partir do momento em que atuam em narco-estados como a Guiné-Bissau?

É que ao mesmo tempo que andava a aconselhar o primeiro-ministro de Portugal e ao mesmo tempo que António Costa lhe entregava as chaves de acesso ao poder político e aos segredos de alguns dos maiores negócios da economia portuguesa, Lacerda Machado continuava a ter todos os outros cargos na Guiné Bissau e em muitos outros interesses da Geo Capital em África e na China.

Termino este ponto com um conselho: se António Costa quer mesmo candidatar-se a um cargo relevante na União Europeia, recomendo que leve Diogo Lacerda Machado como conselheiro para experimentar a reação das instituições europeias e da comunicação social francesa, alemã, belga ou até mesmo inglesa ao curriculum vitae do seu melhor amigo.

Aposto um almoço com António Costa no JNcQUOI Asia que não vão ser tão complacentes como as instituições e os media portugueses têm sido e que certamente concluirão que não está certo contratar o seu melhor amigo para funções públicas

5 Outra questão relevante são os cerca de 75 mil euros que foram descobertos no dia 7 de novembro no gabinete de Vítor Escária, o chefe de gabinete do primeiro-ministro António Costa. E aqui tenho de elogiar a extraordinária capacidade narrativa do PS e de Costa. Os socialistas comportam-se como autênticos David Copperfield’s da ilusão e têm conseguido inventar pretextos atrás de pretextos para retirar o tema da agenda pública.

O problema é que os 75 mil euros existiram mesmo e até Costa já foi obrigado a admitir que eventualmente (eventualmente!) teria que se demitir à mesma, caso não existisse uma investigação no STJ contra si.

Vamos ser claros: desde o início da década de 2000 que Portugal transpôs para o seu ordenamento jurídico todas as diretivas de combate ao branqueamento de capitais, obrigando os bancos a fiscalizar a origem dos fundos dos seus clientes e a escrutinar de forma particularmente apertada as chamadas pessoas politicamente expostas e os seus familiares.

Em caso de deteção de irregularidades ou de mera suspeita, as instituições financeiras têm de comunicar à Justiça de forma proativa todos os indícios que conseguiram recolher, sendo certo que hoje em dia esse dever de diligência alargou-se a outros setores, como o notariado, os mediadores imobiliários e até aos advogados, entre outros.

Outro pormenor importante e que complementa o que acabei de escrever: o Estado desaconselha há largos anos que os cidadãos paguem ou recebam algo em numerário. Deve ser tudo feito com instrumentos bancários para poder ser possível identificar a origem e o destino dos fundos, rastreando-se assim todos os circuitos financeiros.

Desde a primeira notícia sobre esses 75 mil euros em notas descobertos no gabinete a poucos metros daquele que ainda pertence a António Costa que os socialistas mostram um tremendo incómodo. Basta recordar que o socialista Ascenso Simões chegou a prometer um “par de lambadas” a Escária.

Obviamente que não coloco em causa a palavra de António Costa — que garante que nada sabe sobre aquele dinheiro — ou a sua decisão de exonerar Vítor Escária pouco depois de saber o resultado das buscas judiciais em São Bento. Nem vou opinar sobre as questões penais relacionadas com esses 75 mil euros — que existem, ao contrário do que se julga.

A questão é outra. António Costa é politicamente responsável pelas pessoas que escolhe para trabalhar e pode ser naturalmente censurado por ter falhado na escolha. Aconteceu com o seu ex-secretário de Estado Adjunto Miguel Alves (arguido em dois processos quando foi convidado por Costa e hoje acusado) e voltou a acontecer com Vitor Escária, entre outros casos.

Pior: na altura em que o primeiro-ministro convida Escária para ser seu chefe de gabinete, já tinham saído trabalhos de investigação jornalística, como este publicado no Observador, que demonstravam a tendência de Escária para confundir interesses públicos com interesses privado. António Costa não quis ler nem ouvir.

Na prática, e se associarmos a questão de Lacerda Machado à de Escária, Costa cumpriu um velho ditado do povo português: fez a cama em que se deitou. Não sei se é certo ou errado mas foi o que aconteceu.

6 Como se isso não bastasse, António Costa ainda criou uma guerra aberta com o poder judicial, arriscando uma eventual crise constitucional — como está a acontecer há meses em Espanha, como todos os riscos que isso acarreta em termos de uma eventual intervenção da Comissão Europeia.

Na prática, e por razões exclusivamente relacionadas com a sua sobrevivência política, Costa está a fazer tudo para que o PS pressione o máximo que puder a procuradora-geral Lucília Gago e o Supremo Tribunal de Justiça para arquivarem o inquérito que corre termos contra o ainda primeiro-ministro.

Vamos ser diretos: António Costa, da forma mais maquiavélica (outra característica sua) e hipócrita possível, está a fazer aquilo que José Sócrates gostava que ele tivesse feito em 2015. Isto é, está a usar o escudo do PS para se proteger da Justiça.

É mesmo caso para dizer que parece que Costa não tem noção do que é certo mas tem a obrigação de saber o mal que está a fazer à democracia.

7 Finalmente, o caso das gémeas. Desde o início do caso, que nasceu da investigação jornalística da TVI, que sempre disse que havia dois focos no escrutínio aos representantes do poder político neste caso:

  • O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, por ter dado início ao processo, despachando sobre um email do seu próprio filho Nuno Rebelo de Sousa e incorrendo assim em conflito de interesses. E também por não ter imposto regras claras ao staff da Presidência para não lidar com pedidos da sua própria família;
  • E o Governo de António Costa. Ao contrário de Marcelo, era o Ministério da Saúde quem tinha o poder efetivo hierárquico sobre o Hospital de Santa Maria

Como era de esperar, o pior lado do PS veio ao de cima quando o escrutínio chegou ao Governo e a auditoria do Hospital de Santa Maria detetou uma ilegalidade clara: as gémeas luso-brasileiras chegaram à primeira consulta via intervenção do secretário de Estado da Saúde [Lacerda Sales].

Perante a evidência, não só o PS impediu o escrutínio parlamentar da ex-ministra Marta Temido e do ex-secretário de Estado Lacerda Sales, como ainda tivemos direito ao plus de ouvir Francisco Ramos, ex-secretário de Estado do PS e amigo de Lacerda Sales a dizer coisas verdadeiramente extraordinárias na TVI/CNN

E o que disse Ramos, que, refira-se, foi obrigado a demitir-se de coordenador do combate à Covid-19 por não ter respeitado as regras do processo de vacinação no Hospital da Cruz Vermelha?

Que teria feito o mesmo que Lacerda Sales porque “o filho do Presidente da República não é uma pessoa qualquer”e que o seu amigo está ser injustamente crucificado no espaço público pela cunha .

O que diz tudo sobre a falência ética e moral do Partido Socialista que foi liderado por António Costa e representa uma normalização de que algo que é anormal. Repito: a auditoria do Hospital de Santa Maria confirmou que a lei que regula o acesso dos utentes ao SNS foi violada no caso das gémeas luso-brasileiras porque não é possível uma intervenção do Governo para se marcar uma consulta.

Pior: as declarações de Francisco Ramos demonstram que o PS de António Costa quis instituir uma espécie de democracia de casta. Há os que têm acesso ao poder políticos e conseguem consultas no SNS por via privilegiada, violando a lei. E há os pobres coitados, que são os cidadãos comuns, que têm que ir para a fila de espera.

Definitivamente, isso é errado.

8 Vivemos um tempo em que, por razões de conveniência política ou de outro tipo de obediências, se está a tentar normalizar algo que, obviamente, não é normal. E não é normal porque a igualdade de todos perante a lei é uma das características estruturantes da Democracia.

Numa democracia, não é normal que o primeiro-ministro contrate o seu melhor amigo como conselheiro.

Numa democracia, não é normal que um pedido do filho do Presidente da República valha mais do que um comum cidadão.

Não é normal que um secretário de Estado marque uma consulta no SNS ou dê instruções nesse sentido.

Nada disso é normal.

E normalizar o anormal, como o PS de António Costa tentou fazer ao longo destes oito anos, é agravar a doença da democracia.

O PS de Pedro Nuno Santos identifica-se com isso? Ou sabe o que é certo e o que é errado?