1. É como os sissós, uns sobem, outros descem: num banco deste sissó os impostos (os mais altos desde há vinte anos) estão em ascensão implacável, desencorajando o mérito e proibindo a ambição, enquanto no outro assento, as responsabilidades do Estado se somem a olho nu. Dupla perversidade: era à conta desses impostos e em nome deles, que teríamos acesso a um mundo justo e mais civilizado, mas a disparidade entre o muito que pagamos e o pouquíssimo que nos oferecem é afinal a melhor radiografia de uma geringonça a fazer de conta; na Educação parece que só contam os professores, os seus direitos e os seus estados de alma, (os alunos são um estorvo e as famílias, descartáveis); a Saúde oferecida aos de menores recursos, definha como eles; a ausência de investimento público( cativações oblige) começa a ser perigosa, veja-se a deficiente manutenção de alguma obra pública a carecer de intervenção antes que; a Justiça é uma tartaruga, a Defesa, um manancial de histórias obscuras que ninguém quer aclarar, a Administração Interna uma morada onde se cumpre pouco e pouco se serve.

Não me consta que isto impressione por aí além as boas almas, a natureza humana socialista vê o que quer. “Vê” que Portugal cresce sem nunca se interrogar porque é que na Europa dos 28, há quase vinte países que crescem mais ou bastante mais que nós, (a começar pela vizinha do lado); vê que o desemprego desce sem cuidar de que quanto mais ele desce (desculpem, outra vez o sissó) mais sobem os salários magros e pior é a qualidade do emprego. Exalta o turismo (olhe-se a convicção com que Jorge Coelho nos garante que “isto há seis anos era um deserto…”) mas não encara que o fenómeno dificilmente voltará a galopar desta maneira. Foi até pena que antes da galinha deixar de pôr ovos de ouro não se tivesse aproveitado este instante também de oiro para mudar ou sequer melhorar aquilo que naturalmente reclamava a “ocupação” turística. Mas não estão afinal os portugueses felizes, dos governantes aos governados? Há que festejar nem que seja os equívocos.

2. E agora acabamos de ouvir o nosso comunicativo Chefe de Estado a dizer-nos sobre os incêndios que “cada um está a fazer a sua parte”. Não é verdade. O que vimos no sector ou sectores com as maiores, mais directas — e por isso insubstituíveis — responsabilidades nesta questão é uma exposição pública de inoperância: desorganização, ordens e contra ordens, demissões em catadupa, intriga, imposições de partidarite, más escolhas, atrasos. Fica- se arrepiado com a última “novidade” achada por Eduardo Cabrita, para o (bom) combate aos fogos: “o envio de sms” a anunciar o fogo, que afinal logo se descobriu que fora má ideia do governante… Os sms nunca viriam a funcionar caso se viesse a contar com eles, infeliz Eduardo Cabrita, inútil ministro.

O Presidente da República tem de saber tudo isto melhor que nós, tanto que fez um aviso ao país onde era questão de relacionar a sua recandidatura com a ocorrência de futuras tragédias. Dir-se-á que foi a forma politicamente mais forte para um último aviso, e embora admitindo que houvesse outras mais felizes, fiquei esclarecida: o Presidente não dorme descansado.

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3. Julgava eu que já vira muito sentada como estou há décadas, na primeira fila da actualidade, mas não: politicamente talvez nunca tenha assistido a nada como a encenação com que há dias o PS nos brindou tratando-nos como uma plateia de imbecis desmemoriados ou de gente que tivesse toda nascido ontem . Numa manipulação bem oleada, trucidou-se Manuel Pinho — como se nunca o tivessem visto e nada tivesse ocorrido num governo socialista — e a seguir, cavalgando o balanço aberto por Pinho, matou-se o fantasma: o assassínio de José Sócrates em directo foi rico de efeitos visuais e passível de recomendação para futuros actores. A semana gravou uma mancha irremovível na história do PS mas conseguiu pior ao deixar um embaraçante amargo de boca face ao espectáculo: gente supostamente responsável a portar-se tão mal ao mesmo tempo, com a hipocrisia a correr como um rio apressado para o mar. E no entanto… poderia — deveria –. ter sido de outra maneira não fora a direcção socialista ter sempre pensado – como pensam os “donos” das coisas — que controlaria os danos da saga Sócrates, passando incólume e inocentemente por eles. Afinal desaguaram no pretexto do espantoso Manuel Pinho, á época, ministro de alto sucesso e grande á vontade, movendo-se sob a asa protectora do ex-dono disto tudo, que também á época se achava que era de aço.

4. Talvez porém que a mais risível tentativa de fazer de nós idiotas embora suspeito que idiotas inúteis, foi aquela de atirar com o mesmo tipo de culpa para cima “da direita”. Ou -. nuance — “do PSD”, ou — variante — “do bloco central”. Como se pela sua natureza, objectivos, montagem, oficina, amplitude, controle (e indecência) houvesse sombra de comparação. Ou equivalência, mesmo modesta, com os casos de corrupção de má memória praticados pela “direita” (como as esquerdas julgam que ela é: uma organização lamentavelmente sem direito de cidade).

Mas enquanto a esquerda socialista se entretém a difamar todo o espaço a sua direita, revelando quem são os adversários e onde estão os inimigos — e aprendamos a lidar com este PS que não conhecíamos de lado nenhum e em nenhum lado o víramos nos últimos quarenta anos –, eu entretenho-me com um mistério: onde ir buscar razões ou argumentos para a indiferença portuguesa face á corrupção? Que alheamento é este, não se interessam, não se importam, não se indignam? Será a carteira supostamente mais folgada? Um ar do tempo supostamente sem “austeridade”? Uma governação supostamente exitosa? Não sei. Mas sei que mesmo com o PS cada vez mais enredado numa invulgar soma de indignos comportamentos políticos — passa culpas, disfarces, vergonhas, hipocrisias — as suas intenções de voto não abanaram.

Ou então talvez estejamos enganados e o país que não “passa” na televisão, que é menos ouvido e menos procurado estará, quem sabe? silenciosamente de costas voltadas para o PS.

5. Mesmo vindo eu agora aqui mais espaçadamente, admito o seu cansaço, caro leitor: há muito que escrevo o mesmo artigo, textos monótonos de tão parecidos uns aos outros, uma maçada. Mas… não vislumbro outra saída para não me tomarem por parva senão assinalar uma e outra vez estas, como dizer?, discrepâncias entre a realidade como ela é, e aquilo que nos servem: um país com economia sustentável, dizem eles, bom emprego, crescimento significativo, educação que se recomenda, saúde para quem menos lhe acede. Um Estado para todos mesmo os que não são da função pública. (Sem esquecer que uma eficiente e unida organização nacional de combate aos fogos, já está em marcha, com todos os meios operacionais prontos e reunidos.) Mundo perfeito, azul.

O PS precisa da ficção, o fazer de conta é o seu alimento, o seu amparo e o seu refúgio. No mundo perfeito dos novos proprietários não há lugar para destoantes e detestam-se os outsiders, obsessivamente combatidos como cavalos de Troia de outros e não como seres pensantes que simplesmente discordam.

Nunca convencerei habitante algum do mundo da geringonça de que não sou o objecto de uma súbita esperança no PSD, a vítima de uma indomável saudade de Passos Coelho, ou uma miserável reacionária a quem se deveria vetar não apenas o direito de cidade mas o acesso à pena.

O mais interessante é que não estou a brincar. Pelo contrário: tamanhas tentações de poder, controlo e manipulação, preparam para a guerra. Preparam-nos.