E fez-se História: o Conselho de Governadores do Banco Central Europeu decidiu-se por um programa massivo de compra de dívida pública: 1,1 biliões de euros no total, 60 mil milhões de euros por mês a começar já em Março, muito acima dos 500 ou 600 mil milhões sugeridos nos últimos dias (o PIB português é da ordem dos 172 mil milhões), de dívida acima de “lixo”, com notações de risco de investimento (incluindo pois a dívida portuguesa). É um “Quantitative Easing” (QE), usado nos últimos anos com abundância por países como os EUA.

Portugal vai vender 1,45 mil milhões por mês, 2,5% do total da “bazooca”.

O mais interessante em tudo isto – e na discussão dos últimos dias – é que os mesmos que criticaram ao longo dos anos o BCE por não utilizar todos os recursos disponíveis para (tentar) fazer crescer a economia europeia e combater a deflação, vieram a terreiro criticar a medida, por não mexer com as estruturas (e as deficiências estruturais) da economia europeia e por isso se arriscar a ser um mero paliativo, uma medida desesperada incapaz de promover o investimento, o consumo e o crescimento.

Outros, como André Macedo, criticaram o facto de o programa prever o registo da compra da dívida nos balanços dos bancos centrais, cabendo a estes e não ao BCE a responsabilidade por ela (sabe-se agora que o risco de 20% do total das compras será partilhados por todos, através do BCE, afinal um primeiro grande passo no sentido da mutualização das dívidas). Macedo chamou-lhe “Muro de Berlim”, por considerar que a inexistência de uma verdadeira solidariedade e partilha do risco reforça a divisão da Europa em países ricos e pobres.

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Mas a intervenção do BCE tem a ver com o seu principal objectivo: a estabilidade da inflação um pouco abaixo dos 2%. Ora a Europa vive há algum tempo um período de quase deflação (ou mesmo deflação), que leva à instalação do marasmo económico e crescimento anémico do PIB. Um programa de estímulos desta natureza era quase um imperativo, exigido aliás há anos por sectores transversais das sociedades europeias.

É preciso lembrar (como faz o Observador no Explicador sobre esta matéria) que a intervenção de Julho de 2012 com o anúncio dos OMT – Transações Monetárias Definitivas – que prometia a compra ilimitada de dívida pública de um dado país sempre que os juros de dívida respectivos atingissem determinados máximos, foi um sucesso. Desenhado para fazer baixar os referidos juros – e nunca tendo sido utilizado -, o mero anúncio teve como resultado… baixar os níveis dos juros (para níveis historicamente baixos actualmente, aliás).

Não sei, nem ninguém sabe, se o QE à europeia vai ou não resultar. Há apesar de tudo fundadas esperanças que isso aconteça. E provavelmente ninguém entenderia que o BCE não tomasse esta medida – não o fazer desencadearia uma reacção negativa dos mercados, de consequências difíceis de prever, para além de reforçar as tendência deflacionistas. Recorde-se uma coisa simples: com as taxas de juro de referência próximas do zero (0,05%) e a não resultar na reanimação da economia europeia, resta pouco mais a fazer do lado do Banco Central. É certo que o programa, como têm vindo a alertar os responsáveis alemães, pode estimular tendências de risco moral (o célebre “moral hazard”), levando alguns países a descurar a luta contra o défice (e concomitantemente a dívida).

Mas o fantasma agora é outro, chama-se deflação ou inflação negativa e a sua persistência é o pior dos venenos para qualquer economia.

A crítica relativa à assumpção de parte do risco (e da compra em si) por parte dos bancos nacionais em vez de ser do BCE (europeia, solidária) é em si mesma justa; mas convém lembrar que tem havido uma resistência estrénua de muitos países, bancos e banqueiros nacionais ao programa de QE (por razões como o já anunciado risco moral). Esta foi a forma encontrada pelo BCE para convencer os críticos e permitir o lançamento do programa. E para já introduz uma grande novidade, uma absoluta “première” europeia, a mutualização de uma parte da dívida.

Importa ainda lembrar que o Banco Central Europeu, uma vez mais, põe a cabeça à mercê dos seus inimigos: na verdade o Tratado proíbe-o de financiar os défices dos países europeus, subscrevendo dívida. Ora é isso que foi agora anunciado, um financiamento monetário explicado – e fundamentado – com a necessidade do BCE cumprir o respectivo mandato relativo à inflação, como acima explico.

Ou seja, passo a passo vai-se construindo uma União Monetária e Económica efectivamente europeia e cada vez mais “federal” (termo usado apenas para ilustrar o argumento). É afinal a aplicação da bem conhecida política dos pequenos passos, peça a peça consolidando o modelo necessário e suficiente para o bom funcionamento da União. E aos poucos, também, soluções impensáveis ainda há dois ou três anos vão entrando no cardápio europeu.

Como bem entendem todos aqueles que têm uma visão de conjunto desta realidade, desde a eclosão da crise e em particular depois de 2011 – nisso entrando também, ou talvez sobretudo, a crise grega – o Banco Central Europeu tem desempenhado um papel de facto central. A “bazooca” que usou não é ainda a bomba atómica europeia, a qual poderá ser a emissão conjunta e mais significativa de dívida europeia, mas é uma peça essencial e esperada pelos mercados, pelos governos e pelos povos. QED, sendo o D de decisivo para o futuro da Europa e o regresso ao crescimento? Talvez não totalmente, faltam as prometidas e fundamentais reformas estruturais à escala europeia.

O caminho faz-se caminhando e nada é tão verdadeiro como nesta construção europeia em que tantas carpideiras da desgraça anunciam regularmente catástrofes, para logo se passar a um novo patamar, a uma nova fase, nem todas felizes, nem todas bem sucedidas, mas todas importantes e sempre um pouco mais longe. Caminhando, QED.

* Professor do Instituto de Estudos Políticos, Universidade Católica Portuguesa