Há uns versos de Alexandre O’Neill que, por estes dias de morte e esboroamento do país, me vêm muitas vezes ao espírito:

Prontifica-se
a fazer,
mas fica-se
no dizer.

Pronto! Fica-se…
Que se lhe
há-de
fazer?

Eles valem, é claro, para cada um de nós individualmente: quem não se comprometeu, uma vez ou outra, a fazer algo que não fez? Quem nunca pecou que atire, lampeirinho, a primeira pedra. Não serei sem dúvida eu a fazê-lo. E valem também, como toda a gente sabe, para os governos. Não há Governo que não tenha sido acusado (com razão, o mais das vezes) de não ter cumprido as suas promessas eleitorais, de se ter prontificado a fazer e de se ter ficado no dizer.

Acontece que este Governo de António Costa leva a prontificação não cumprida a extremos raros. Entre o dizer e o fazer ergueu-se uma barreira que torna praticamente impossível qualquer continuidade entre um e outro. Às vezes, o processo não traz novidade. Assim, a 11 de Abril do ano passado, António Costa prontificou-se – tratava-se, declarou, de “um objectivo muito claro” – a entregar computadores a todos os alunos no início do ano lectivo. Não o fez, ficou-se no dizer: foram entregues 100 mil, faltando 350 mil. Estamos no caso clássico da promessa não cumprida, embora aqui com as consequências desastrosas que se conhecem para o ensino no contexto da pandemia. Pelos vistos, a existência de um Ministério da Transição Digital não nos salvou desta.

Mas há casos mais inovadores: por exemplo, dizer-se que não se disse o que se disse. Assim, António Costa, em amena conversa na “Circulatura do Quadrado” (não poderiam ter arranjado outro nome para o programa?), afirmou taxativamente e com o mais brando ânimo que o ministro da Educação não tinha dito o que tinha dito, a saber: que os colégios privados não poderiam, em caso algum, providenciar ensino online no período em que a escola pública (por falta dos ditos computadores) não o providenciava. Por outras palavras: reduziu o seu ministro (que não levou a mal) ao estatuto de biruta e tratou os seus colegas de conversa, bem como os portugueses em geral, como um bando de birutas. Confesso que, desde os saudosos tempos de Vale e Azevedo à frente do Benfica, não me lembro de assistir a uma tão gloriosa manifestação de plácida imunidade à verdade. Tal imunidade não pode deixar de produzir efeitos no Governo no seu todo. O que se promete deixou de ter qualquer relação com o real. Os lapsos valem o que valem, mas talvez não tenha sido por acaso que o ministro Eduardo Cabrita, aos berros, como um possesso, no Parlamento, declarou que o Governo vacinaria contra a Covid todos os portugueses com mais de 80 mil anos. A imunidade à verdade acaba por propiciar o delírio.

E esta imunidade à verdade, bem como a barreira entre dizer e fazer que antes referi, deixam a suspeita que o programa de vacinação do Governo não é para levar a sério. Algo que o agora demissionário coordenador da chamada task force para a vacinação, Francisco Ramos – um titã do pensamento e da acção, igualmente presidente executivo do Hospital da Cruz Vermelha -, com uma displicência toda aristocrática pelas minudências deste baixo mundo, corroborou fortemente.  Como se sabe, lavou repetidamente as mãos de qualquer responsabilidade nas vacinações selvagens que grassam de Norte a Sul e aproveitou, a total despropósito, para manifestar o seu desprezo por “aqueles 11% ou 12%”, apelidados de “vingativos”, que votaram em André Ventura, demonstrando assim um sábio entendimento do lugar que ocupou, que tem tudo para tranquilizar os portugueses, sobretudo aqueles que serão vacinados nos centros de saúde, cujos responsáveis maioritariamente não sabem ainda quando receberão vacinas, que protocolos adoptar, etc., e que foram informados que deveriam iniciar a vacinação esta semana pela comunicação social. Um gigante, o ex-coordenador, embora, é verdade, às cavalitas de outros gigantes, como António Costa e Marta Temido, ambos infelizmente não-demissionários impenitentes.

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Como poderia, de resto, não o ser? Todo o Governo se encontra banhado numa inocência pré-lapsária tipicamente socialista que só pode assegurar a infalibilidade. Um antigo ministro da Saúde socialista, Correia de Campos, assegurava-nos, em entrevista ao Diário de Notícias de 17 de Janeiro, que “a pandemia não está fora de controlo”. E António Costa, na sua conversa na “Circulatura do Quadrado” asseverou-nos candidamente que não conseguia descortinar na sua acção erro algum. Os outros tentaram apontar-lhe possíveis falhas do Governo, para logo se verem admiravelmente refutados. Por isso, as críticas ao Governo só podem nascer em mentes perversas de gente que vive num mundo pós-lapsário e corrompido, como, por exemplo, Paulo Rangel, Miguel Poiares Maduro e Ricardo Baptista Leite, que urdiram, segundo António Costa, uma “campanha internacional contra Portugal”. Mentes que, nas palavras da ministra da Saúde, referindo-se aos críticos da sua gestão da pandemia, são obviamente “criminosas”. Felizmente, há vozes que se levantam em defesa do bem. Como a da eurodeputada socialista Isabel Santos, que, contemplando a Europa inteira do cimo da sua napoleónica pirâmide, fez por todos ouvir o clamor da pátria a favor da ministra da Justiça: “Ergo-me do alto de 900 anos de História!”, ecoando uma outra voz, a da deputada (igualmente socialista) Joana Sá Pereira: “O vírus teve, eu diria, talvez o azar de encontrar pela frente um povo experimentado e um Governo capaz”.

Bem dito! E, por ser bem dito e tornar clara a infalibilidade do nosso Governo, a voz da deputada explica o recente vocabulário usado pela ministra da Saúde, que falou, a propósito da vinda de pessoal e material médico da Alemanha para ajudar a resolver os problemas dos hospitais portugueses, de uma “colaboração” com a Alemanha. Certamente que a palavra que viria espontaneamente ao espírito, “ajuda”, não é compatível com a infalibilidade (só pede ajuda quem não é infalível, como é bom de ver) e “colaboração” convém certamente mais. É uma verdadeira lição para a vida! Doravante, sempre que for na rua e encontrar alguns dos meus pedintes fixos, não sacarei do bolso a moeda a título de ajuda, mas sim de colaboração. Isto é, se ele for magnânimo como António Costa e, para adoptar a linguagem do “Público” sobre a reacção do Primeiro-Ministro à ajuda alemã, graciosamente a “aceitar”.

Restam, é certo, vários problemas, entre os quais o tão falado caso das vacinações selvagens, isto é, daquelas vacinas que vários indivíduos com algum poder, normalmente com cartãozinho de um partido ou outro (sobretudo do PS, é verdade), distribuem pela família, pelos amigos ou por quem quer que seja, com justificações diversas e de desigual valor. O caso suscita uma generalizada indignação mediática. Podemos, no entanto, perguntar-nos se a disposição para nos considerarmos excepções justificadas às regras estipuladas não vem apenas do nosso atavismo cultural, como às vezes é sugerido, mas também de uma ausência de indicações precisas por parte do Governo, que merece um respeito decrescente, e do sentimento, resultante da percepcionada ineficácia do Estado, que nos encontramos abandonados a nós mesmos, numa espécie de retorno ao estado de natureza em que cada um luta pela sobrevivência própria, segundo a lei do mais forte. Esta hipótese, embora verosímil, não deve ser verdadeira. Porquê? Porque António Costa já explicou em detalhe que a culpa da presente situação é toda dos Portugueses e em nada dele. E, já agora, Marcelo concordou, o que não se deve levar demasiado a mal: ele já tem tantas qualidades – é verdade -, que pedir-lhe coragem nestas coisas, por desgraça as únicas que verdadeiramente nos importam, é declaradamente excessivo.

Não tenho dúvidas que António Costa, se pudesse, mudava, como o outro aconselhava, de povo. Este, pelos vistos, não o satisfaz. Entre outras coisas, adoece e morre quando ele não quer. Há, no entanto, uma razão óbvia para não o fazer: o suspeitar que nenhum outro povo votaria nele.

Que se lhe há-de fazer? E o que é que nos vai acontecer?