1E no final do sexto ano como primeiro-ministro, António Costa descobriu a palavra-maldita: reformas. Já a diz em público e até anunciou na entrevista à CNN Portugal, que tem “uma reforma essencial em curso”: a direção executiva do Serviço Nacional de Saúde. E já tem ministros, como Pedro Adão e Silva, a garantir ao Expresso que se “há áreas com transformações profundas para serem feitas, o Governo tem obrigação de as fazer, sobretudo pelas condições decorrentes da maioria absoluta”.

Com quase 2.200 dias como primeiro-ministro e ao fim de 180 dias com maioria absoluta, António Costa parece querer fazer algo de que sempre fugiu: governar, em vez de gerir; pensar estrategicamente o país, em vez de navegar à vista.

É para ser levado a sério? Duvido muito.

2 Ainda falta uma eternidade (quatro anos) para o final do mandato mas os sinais de deterioração política do Governo estão à vista de todos e não podem ser ignorados. Por muito que lhe custe, a entrevista que o primeiro-ministro deu à CNN Portugal só veio a agravar a situação.

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Vamos por partes. Em primeiro lugar, os problemas estruturais do Serviço Nacional de Saúde com falta de médicos, ausência de organização, urgências fechadas e uma quebra acentuada da falta de qualidade do serviço prestado, tal como a extraordinária falta de 60 mil a 70 mil professores no sistema público de ensino só podem ser da responsabilidade de António Costa e do seu Governo. Não vale a pena inventar, como Marta Temido tentou, de que os problemas remontam aos anos 80.

O primeiro-ministro tomou uma opção estratégica para a primeira fase da sua governação: aliou-se à extrema-esquerda mais conservadora da Europa e auto-inibiu-se de reformar seja o que for. Daí a sua frase de 2017: “A expressão ‘reformas estruturais’ arrepia-me. Qualquer cidadão normal fica logo alérgico”.

No caso da Saúde, e tomando por bons os números de António Costa repetiu na CNN Portugal, o PS aumentou o orçamento do setor em 40%, aumentou o número de profissionais de saúde do SNS em 20%, tem mais 23% de médicos do que tínhamos em 2015 mas… há falta de médicos, as urgências fecham, as listas de espera persistem e a confiança dos portugueses no SNS (que tinha sido reforçada durante a pandemia) é posta em causa.

Portanto, o PS despejou dinheiro em cima do problema mas o problema agravou-se. É verdade que a maioria absoluta podia ser um verdadeiro anti-histamínico para curar a alergia de António Costa mas, repito, tenho dúvidas sobre a eficiência do medicamento.

3 Agora, diz o primeiro-ministro, é a valer. Agora, sim, vai começar a resolver-se o problema da Saúde. Contudo, a forma como apresenta a reforma da direção executiva do SNS não deixa de ser ‘à Costa’. Ou seja, com um enfoque fortíssimo na desresponsabilização — uma característica tão irritante, quanto persistente em António Costa e contrastante com aquela que teve Marta Temido no dia da sua saída do Governo.

Diz o primeiro-ministro que a “reforma essencial em curso” tem como objetivo “reforçar a autonomia do dia-a-dia do SNS face às políticas de saúde”. Porquê? Porque ao “Governo compete definir as políticas de saúde” e não “gerir o dia-a-dia de um centro de saúde ou de um hospital”.

Ou seja, se o centro de saúde ou o hospital não funcionar ou não prestar um serviço de qualidade, a culpa não será do Governo, mas sim da direção-executiva do SNS. Fernando Araújo será assim uma espécie de pára-raios do Executivo, como Marta Temido foi de António Costa.

4 É verdade que António Costa já tem uma administração central e local com mais funcionários públicos do que em 2011, quando a troika chegou a Portugal. Já contratou mais médicos, como vimos, mas mesmo assim a saúde não funciona.

Também contratou mais professores mas o ano escolar abriu na semana passada com um número recorde entre 60 mil a 70 mil alunos sem pelo menos um professor a uma disciplina e com 1.890 horários por preencher.

A saída de professores por aposentação não era previsível? Claro que era. O Ministério da Educação tem a obrigação de ter esses dados para fazer um planeamento adequado. Isso foi feito?

A questão dos professores é ainda mais grave quando a queda progressiva da taxa de natalidade desde os anos 80/90 tem levado obviamente à necessidade de fechar escolas em algumas regiões do país devido à queda do número de alunos.

Isto é, os alunos são cada vez menos mas mesmo assim temos falta de professores!

Como Luís Marques Mendes recordava este domingo, perdemos quase 500 mil alunos desde o ano letivo de 2009/2010 (uma quebra de 22%). Como também perdemos cerca de 30 mil professores entre 2009 e 2021 (quebra de 17%). E até 2030 vamos precisar de mais 30 mil professores devido à aposentação dos atuais.

Há aqui muita responsabilidade do Governo do PS que lidera os destinos do país desde 2015.

5 E quando não há desorganização, há operações de marketing.  Veja-se o caso das residências universitárias. Certamente sob os auspícios do diretor de comunicação João Cepeda, o Governo organizou uma sessão que não passa de pura propaganda política para ser transmitida na comunicação social e nas redes sociais.

O primeiro-ministro anunciou que o Governo quase que iria duplicar as atuais camas para estudantes para o fantástico número de 26 mil camas até 2026. Quase nove mil camas a mais do que as atuais 15 mil camas. Espetáculo!

Qual é o problema? É que o mesmo António Costa apresentou em abril de 2019 uma primeira sessão de propaganda em que prometia a mesma coisa exatamente com o mesmo Plano Nacional para o Alojamento no Ensino Superior .

Basta ler o Plano para perceber que o Governo prometeu intervencionar cerca de 12 mil camas no período 2019/2022. É verdade que tivemos uma pandemia pelo meio mas não é menos certo dizer que o objetivo de 2019 não foi atingido e agora o Governo não tem a transparência de assumir isso mesmo.

Na realidade, estamos a falar de anúncios políticos que não têm adesão à realidade.

6 Finalmente, temos os apoios públicos às empresas para combater a subida da inflação — já lá iremos ao fatídico IRC. Como vários comentadores já apontaram, o Governo limitou-se a anunciar um apoio de mais de 700 milhões de euros — e não de 1,4 mil milhões como foi anunciado.

Na prática, e ao disponibilizar duas linhas de crédito, o Governo fez um convite às empresas para endividarem-se ainda mais — o que só pode ser recusado. Abrir linhas de crédito, mesmo que em situações vantajosas, não é propriamente o apoio que as empresas necessitam.

O que faz falta são medidas proativas para que os preços da energia baixem, sim. Numa palavra, reduzir custos de produção, sim. Endividamento, não.

Como a conferência de imprensa de apoios às empresas correu mal, o ministro Costa Silva tirou o ‘coelho da cartola’ em Milão, numa visita aos stands portugueses na conhecida feira de calçado: uma “redução transversal” de IRC que podia entrar na proposta do Orçamento de Estado para 2023.

Veremos se a ideia se cumpre em Outubro, com a apresentação da proposta orçamental, mas o facto de o ministro da Economia avançar publicamente com uma medida que nem sequer faz parte do Programa do Governo, só demonstra o grau de preocupação do núcleo político do primeiro-ministro.

Aliás, a preocupação é tão latente que António Costa não se importará de fazer exatamente o contrário de uma das suas primeiras medidas como líder do PS em 2015: rasgar o acordo que o seu antecessor António José Seguro tinha feito com Pedro Passos Coelho para a descida gradual do IRC.

Saúde, Educação, residências universitárias, IRC e outros dossiês, com destaque para a exploração populista que os socialistas têm feito da questão da sustentabilidade da Segurança Social desde os finais dos anos 90, são temas que podem ser fatais politicamente para o PS.

É caso para dizer: quem com ferros mata, com ferros morre.

PS – A marcação cerrada que o PSD de Luís Montenegro está a fazer ao Executivo é a prova de como um líder da oposição é essencial à vida de uma democracia digna desse nome. Montenegro honra o sistema democrático ao fazer uma oposição intensa e escrutinadora, ao mesmo tempo que dialoga de forma responsável com o Governo na questão do Novo Aeroporto de Lisboa. Depois de quatro anos completamente perdido, o PSD tem finalmente um líder e um rumo.

Artigo alterado às 16h40m